Raiva e Resistência

Em Lviv e nas zonas de fronteira ocidental da Ucrânia, o Expresso recolheu histórias de fuga e desespero, mas também de muita revolta e combate

Na maioria das noites, o ocidente da Ucrânia ainda é silencioso. Mas a guerra segue o seu percurso em direção a estas cidades invioladas, qual tsunami em câmara lenta, e as pessoas têm de se preparar. Cidades grandes, médias, e aldeias de poucas centenas de habitantes unem-se nas mesmas atividades de resistência, nas mesmas horas de prece, dividem-se turnos nos checkpoints. O mapa da região é um traçado de resistência e fuga. A Lviv, maior cidade do oeste, chegam milhares de deslocados internos todos os dias - e todos os dias milhares saem a caminho da UE

Estação ferroviária de Lviv

A fuga é fria e escura como um castigo. Todos os dias chegam à estação de comboios de Lviv milhares de pessoas para quem as noites já não têm teto. Agora são passadas à espera de um comboio que não tem hora para chegar.

Os horários já nada significam, o próximo comboio para a Polónia pode chegar daqui a uma hora ou amanhã de manhã.

Nos primeiros dias os quadros digitais ainda estavam ligados, um atraso de horas a piscar, uma semana após o início da guerra já não estão. Os corredores por baixo das plataformas são a única zona onde é possível permanecer sem enregelar, a concentração de pessoas é densa ao ponto de gerar calor. Os que estão nas escadas de acesso aos cais de embarque não são os mais corajosos, são os mais desesperados, os que já viram milhares entrar em comboios e com esse escoar chegaram mais perto do próximo. 

De repente, as luzes dos corredores apagam-se. O caos de há minutos, os empurrões, as zangas, os socos que requerem intervenção dos guardas da estação, tudo é engolido pelo choro das crianças. Não se ouve mais nada e, por segundos, sente-se o medo de uma onda de pânico a nascer nas entranhas da estação. 

Mas sair daqui é perder o lugar. A calma é manobra de sobrevivência.

As mulheres desligam as chamadas e apertam os bebés mais perto do peito, tentam que as crianças repousem a cabeça nos seus ombros. Quando volta a luz, Alan, de seis anos, chora virado contra a parede, perto das escadas de uma plataforma um pouco mais vazia, já que dali não vai partir nenhum comboio para oeste. A mãe, Sibelya, tem um enorme cão preto pela trela, Riki, que mal consegue segurar. “Sem o Riki o meu filho não vinha comigo.”

De mochila às costas, com mais comida do que roupa, saiu de Kharkiv, no noroeste, com bombardeamentos ao lado de casa. Iam fugir no carro de um tio-avô de Sibelya, que, por ter mais de 60 anos, não corre o risco de ser chamado para combater. Só que os carros da rua onde vivia foram destruídos na noite antes da partida. Vieram de autocarro. Alan chora que quer voltar, diz a mesma frase muitas vezes, a mãe não o consegue tirar da parede. “Estamos há 30 horas em viagem, tivemos muita sorte em conseguir sair, mesmo muita, os prédios residenciais estão a ser atacados, o centro da cidade está a ser atacado, foi muito perigoso, ele está a chorar, é normal, mas estamos a salvo”.

Os ucranianos que chegam a Lviv estão empedernidos na convicção de que os militares vão conseguir defender as suas cidades, mas Sibelya aconselha humildade perante o poder de destruição das armas russas. “Em Kharkiv também lutámos, ainda lutamos, vamos lutar, mas não é por isso que a cidade não está a ser destruída”.

Holovnyi, a estação ferroviária de Lviv, parece um palco de teatro, as reações e interações são extremas, caricaturais. É o sítio mais triste da cidade, mas se olharmos Lviv de cima, como de um helicóptero, as linhas de fuga espalham-se por todas as ruas e divergem em direção às fronteiras com a Polónia. Desta estação partem autocarros, táxis, minivans, que serviam para levar os turistas aos hotéis, todos para a fronteira.

De outros pontos organizam-se outras fugas. Na rua Shevchenko, nem 20 minutos a pé de Holovnyi em direção ao centro, estão dois autocarros para Lublin, na Polónia, mas esse não é o destino final destes passageiros. É Lisboa. Dmytro e David vieram só trazer as mulheres e os dois filhos, de quatro e seis anos. São de Kiev e é para Kiev que vão voltar.

“Não acredito que os vou deixar, não acredito.”

David olha para o telemóvel e chama-nos para vermos imagens de destruição dos arredores de Kiev. Não seriam publicadas na maioria dos meios de comunicação internacionais. Foi para este tipo de violência que se inventaram os filtros baços do Twitter e do Instagram, que perguntam ao utilizador se quer mesmo prosseguir com a visualização do conteúdo. “Estou a ver isto e mesmo assim não acredito”, diz o designer de 45 anos.

O frio congela a tinta da caneta. A conversa tem de ser gravada e o telemóvel tem de estar no bolso para não se desligar. “Crianças, são crianças, isto foi a cinco quilómetros da nossa casa, em Kiev. Se fossem soldados era terrível, mas é uma guerra, agora crianças?”

Afasta-se um pouco, dá mais um abraço à mulher, Imma, que se mantém na fila onde o condutor verifica os documentos de quem se inscreveu para viajar para Portugal com a associação Ukrainian Refugees UAPT. “Se toda a gente for embora, não temos com quem lutar, quero ir ter com eles a Portugal, mas não vai acontecer tão cedo, eu sei, mas não lhes digo”.

David protege-se da neve com o filho. Está impaciente, agarra-se às pernas do pai e depois às da mãe. A família partiu da capital dia 2 de março, seis dias depois do início da guerra, mas até conseguirem sair as noites foram “duras”, três delas no metro da cidade. “Perto de casa ouvia-se em permanência o som de morteiros e metralhadoras, digo-lhe que são tiros de caçadores que andam aos pássaros, e que acontece sempre nesta altura do ano”, conta. “O que é que posso dizer?”

Margarida Protsenko, mulher de Dymtro, também vai partir. “Faz cinco em maio”, diz Dmytro a olhar para o filho. Vira-se de costas para o autocarro para ninguém o ver chorar. Depois percebe que para esconder a emoção está a deixar a mulher partir sem um último abraço, e corre para ela. O menino dá beijos ao pai, mas não está triste. “Ainda bem que ele vai embora nesta idade, os miúdos não se lembram, a mãe diz que eu fiquei a trabalhar e pronto.”

As duas famílias entram por fim no autocarro e, assim que se sentam, as mulheres apressam-se a limpar o embaciado dos vidros para poderem despedir-se dos maridos. David coloca o braço por cima de Dmytro e assim ficam, de frente para o autocarro, a dizer adeus. Choram em silêncio. Dmytro começa a fazer palhaçadas para o filho, finge que corre, sem sair do lugar, finge que vai correr atrás dele.

A fronteira

Natalia, Veronika e Lydia, três mulheres dentro de uma Ford Transit que já é um T0 — colchões, cobertores, roupa, pequenas botijas de gás, um fogão portátil, dezenas de garrafões de cinco litros de água e um alguidar enorme, para o banho dos miúdos. Nos primeiros cinco dias de guerra, a fila para sair em direção à Polónia pela principal passagem nunca teve menos de 15 quilómetros. Militares ucranianos percorrem a estrada noite e dia à procura de homens com passaporte ucraniano em idade de lutar, o que vai atrasando a progressão dos carros. 

Os tempos de espera, que a embaixada portuguesa em Varsóvia enviou aos jornalistas quatro dias depois do início da invasão, mostravam o caos: na passagem de Dorohusk a espera para entrar de carro atingia as 70 horas, de autocarro cinco. Em Zosin, 24 horas para carros, cinco para autocarros. Em Medyka, a passagem principal, 63 horas para carros particulares, 10 horas num autocarro. Quanto aos números de pessoas para passar a pé, sempre mais de 500 por hora, em qualquer das fronteiras. Em Medyka, cujo posto fronteiriço do lado da Ucrânia, Shehyni, fica a 70 quilómetros do centro de Lviv, a média, no dia 28 de fevereiro, era de 3000.

Em um mês de guerra, fugiram da Ucrânia 3,5 milhões de pessoas, pelo menos seis milhões estão deslocados dentro do país, o que eleva o número de pessoas que tiveram de deixar as suas casas para 9,5 milhões, quase a população de Portugal.

Os documentos são verificados por vários departamentos, os dados registados, as pessoas por vezes interrogadas e multiplicam-se relatos de racismo contra os negros que estão a tentar sair, agredidos e mandados para o fim da fila. 

Thomas Israel, engenheiro informático nigeriano de 33 anos, vivia nos arredores de Kiev, onde trabalhava numa empresa de software há cinco anos. Vive na Ucrânia há dez, estudou aqui, tem residência. Ao 3.º dia de guerra decidiu sair de Kiev porque a sua namorada ucraniana está grávida e o medo de já não haver cuidados neonatais por altura do nascimento da criança estava a deixá-la demasiado nervosa. Passadas 18 horas chegou a Lviv, estacionou e já não conseguiu ligar o carro. Na cidade os hotéis estavam cheios, havia famílias nos átrios. “Decidi que mais valia ir diretamente para a fronteira. Encontrei um taxista que aceitou levar-nos, mas as filas eram enormes e ele disse que tinha de regressar, porque havia recolher obrigatório às 22h. Fiquei estupefacto. Que íamos fazer ali os dois, a meio da noite, a 50 ou 60 quilómetros da fronteira, ao frio?” Um carro que ia no sentido contrário concordou em levá-los de novo para Lviv — por fim encontraram um quarto para descansar e no dia seguinte tentaram o comboio. A namorada de Thomas já está na Polónia, ele foi impedido de embarcar. “O racismo é a principal razão para este tratamento, não encontro outra, mas mesmo assim há formas de falar com as pessoas. Se me dissessem: ‘primeiro vamos retirar cidadãos ucranianos, ok? Depois vocês podem ir’, eu aceitava, pode ser injusto ou discriminatório, mas podem falar decentemente connosco, explicar em vez de empurrar, gritar, ameaçar com armas”.

Depois de deixar a namorada no comboio, voltou à fronteira, de táxi até onde foi possível e depois a andar. Esteve de pé nove horas, à espera para entrar em Medyka. “Quando chegou a nossa vez os militares ucranianos não nos deixaram passar e começaram a empurrar-nos com os bastões para fora da fila. Não nos veem como iguais, ponto final. Depois há os outros ucranianos, os meus colegas e amigos, diferentes destes guardas. É assim a vida, amo este país e quero regressar quando possível, se conseguir sair”. Thomas conseguiu, à terceira, no 10º dia da guerra.

O governador da cidade, Maksym Kozytsky, nega qualquer ação racista. Refere que com pessoas que não têm passaportes ucranianos ou de um país europeu, a identidade pode demorar mais a confirmar.

A marcha é tão lenta que as pessoas saem dos carros, esticam as pernas, fumam, levam os filhos a passear pela berma e até se juntam em grupos, com banquinhos desdobráveis, a comer enlatados e sanduíches. O carro a que pertencem pode ter percorrido 300 metros, caso se tenha mexido de todo. 

Na carrinha das três mulheres há cinco crianças: dois bebés, duas meninas com três e cinco anos e Igor, filho de Veronika, que tem 13. Ao volante vai o pai de Veronika, com 70 anos. Igor não sabe o que pensar da guerra. “Os mais novos não entendem bem o que se passa”. A mãe reforça: “Nem os mais novos nem os adultos, eu não entendo mais que ele”.

O marido de Veronika, irmão de Lydia e Natalia, trabalha numa empresa de venda de material de hotelaria, em Lublin, na Polónia, onde vai receber a família. Os maridos das outras duas ficaram para trás, em Kakhovka, na região de Kherson, cidade que a Rússia tomou entretanto. Quando encontrámos a família, ainda não tinham sido chamados para combater, não são militares de profissão nem têm treino, mas estão a aprender o básico nas Brigadas Territoriais de Defesa, que no leste e no sul treinam em segredo, na floresta. 

“O meu marido quer vir da Polónia para aqui, depois de nos receber, eu preferia que não, precisamos quem possa trabalhar, fale polaco e nos defenda e ajude a orientar, antes de nós mesmas conseguirmos trabalhar, mas não lhe vou dizer nada disto, ele se quiser voltar eu apoio”, diz Veronika Schumouskaya, de 35 anos, que vinha a conduzir a carrinha quando uma salva de morteiros passou por cima da autoestrada onde seguiam, na direção da cidade que tinham deixado para trás. 

Até Lviv foram 44 horas na estrada, de respiração suspensa. “A noite toda, de tempos a tempos, um helicóptero ucraniano passava por cima da fila de carros com um megafone a dizer: ‘Apaguem as luzes e desliguem os vossos veículos. Apaguem as luzes e desliguem os vossos veículos’. Ficávamos parados, as aldeias à volta escuras, sem saber se era por precaução ou se havia mesmo hipótese de sermos bombardeados”

Apesar de terem aceitado fugir, os pais de Veronika falam muito em voltar. “Acho que lhes faz muito mais confusão não saberem ao certo o que se passa na terra deles do que estarem lá a ver os morteiros”. Que será Kakhovka quando esta família regressar? “As nossas casas, segundo a família que lá ficou, ainda lá estão, mas irão ser ocupadas por russos, por soldados russos, será que vamos encontrar lá todas as nossas coisas? Duvido muito”. 

Ao 13º dia de guerra, na mesma fronteira de Shehyni, enquanto falávamos ao telefone, um senhor vem perguntar de onde somos, em português. Há 20 anos esteve no Porto a trabalhar como engenheiro mecânico, e ainda fala um pouco, muito pouco, do idioma. Acaba por ser um italiano em fuga de Kharkiv que nos ajuda a falar com Ivan Ilnytsky e a mulher, Galina. Ambos com 63 anos, têm três filhos e cinco sobrinhos que ficam para trás, um dos filhos na frente, a retirar pessoas de Irpin. Os outros dois não podem sair do país, mas estão em Lviv, para já, como os sobrinhos. É de Irpin, nos arredores de Kiev, que chegaram algumas das mais chocantes imagens da guerra. Uma, capa de “The New York Times”, mostra uma família — pai, mãe e duas crianças — morta a tiro, as malas da fuga ao lado dos corpos. Foi em Irpin que um homem perdeu cinco parentes quando a casa ruiu por cima de todos, entre eles a mulher e a filha adolescente. Ivan e Galina conheciam-nos. O casal mal consegue falar. Ela vê vídeos da cidade, compulsivamente, à procura da casa que passaram os últimos 10 anos a construir. No fim de semana antes da guerra deram a obra por completa, esteve lá a família toda. Para o ano Ivan ia reformar-se.

“Não olhes mais para isso, mulher, nem vais conseguir distinguir a nossa casa no meio dessas pedras”.

Ela diz que consegue e precisa de ver se ainda está lá. Percorre a linha do tempo do vídeo para trás e para a frente, ele encolhe os ombros e limpa as lágrimas por trás dos óculos. Vão para a Alemanha, para Leipzig, onde Ivan trabalhou e onde têm amigos próximos. A reforma fica adiada. 

Igreja do Santo Mártir Clement Sheptytsky

Rezar, em tempos de guerra, é importante mas não é suficiente.

Grande parte do dia do padre Sebastian é passado na rua, a receber quem foge da invasão. Não encontra conflitos entre a fé e a necessidade de pegar numa arma para defender a cidade. “Não vou agredir ninguém primeiro, mas não posso deixar morrer mulheres, crianças, homens indefesos na minha cidade”, diz, enquanto percorremos as salas onde guarda dezenas de peças de arte sacra que ele mesmo recolheu entre os escombros das igrejas abandonadas e destruídas pela ocupação soviética

A simbologia da igreja do Santo Mártir Clement Sheptytsky começa no nome. Em 1941, quando a perseguição dos cristãos imposta pelas purgas da União Soviética deu lugar à perseguição nazi dos judeus, Sheptytsky, chefe do mosteiro de Lviv, dedicou-se a enviar judeus para territórios onde pudessem estar a salvo.

Esta igreja, no centro da cidade, foi fechada pelos soviéticos, e até 2007 esteve ao abandono. Quem pegou no projeto de reconstrução foi o padre Sebastián, de 66 anos, e é daqui que coordena a ajuda humanitária a quem chega das zonas mais afetadas.

Nos países que fizeram parte da orla de Moscovo, ser católico era ser rebelde. Os padres ucranianos, como os polacos e húngaros, foram uma força muito importante da resistência. Em 2022 como em 1978, ano em que Sebastian se iniciou na vocação às três da manhã, em segredo, na cave da casa de um casal católico, a igreja volta a ser chamada a reagir ao que considera ser a sede de poder de Vladimir Putin, um ato de agressão que os ucranianos não provocaram. “Mudei os meus sermões e quase só falo da importância da calma e da fé. A missão da igreja nesta guerra é em primeiro lugar dar paz e calma às pessoas, impedir que sintam pânico, que o medo tome conta dos seus corações”, diz, guiando-nos pelo museu adjacente à igreja. De braço dado com a resistência do espírito, vem a resistência da força. “Não ficamos só sentados a rezar, também nos preparamos para combater. Tenho guardado todas as garrafas de vidro das eucaristias, vamos preparar cocktails molotov aqui, como toda a gente, neste momento, nas suas casas”.

Ao seu lado, o padre Vasyl, 30 anos mais novo, assente com gestos lentos, de olhos fechados. “Acho que, no fundo, muitos ucranianos, os que ainda se lembram da II Guerra Mundial, não entendem bem porque é que a Rússia invadiu o país. Há muitos traços culturais que unem os dois povos. Claro que toda a gente com menos de 80 anos é muito provavelmente da opinião contrária, só têm uma memória: Holodomor, Sibéria, URSS, pelo que não estão nada surpreendidos”, diz Vasyl, de uma geração que tem nos protestos de Maidan a grande referência revolucionária. “Fui protestar, o padre Sebastian também, e um dia, quando as coisas se tornaram mais violentas e a polícia começou a usar a força, um rapaz perguntou-me: ‘Padre, para que serve a Bíblia numa altura destas?’. Disse-lhe que, naquela praça, a Bíblia servia para agredir, com força, quem os quisesse agredir”, conta o padre, que agita os braços da esquerda para a direita como se brandisse uma espada para afastar um exército imaginário de agressores. 

Já no cerco de Maidan, em que milhares de manifestantes se barricaram na praça central de Kiev mais de três meses, no fim de 2013 e início de 2014, a igreja teve um papel essencial. As imagens dos padres de todas as religiões a rezar com o povo sitiado no meio do fogo, do fumo, do gás lacrimogéneo, são das mais fortes daqueles dias de revolução por uma Ucrânia mais próxima da União Europeia. 

No dia 11 de dezembro, numa investida violenta da polícia especial, as chamadas brigadas Berkut, o sineiro do Mosteiro das Cúpulas Douradas de São Miguel, Ivan Sydor, coordenou o bater dos pêndulos da uma às cinco da manhã, sem parar. Desde a invasão mongol de 1236 a Kiev e outras cidades eslavas, hoje capitais no leste e norte da Europa, que os sinos não dobravam todos ao mesmo tempo. Estávamos no século XIII, plena Idade Média. A religião não se tornou pensamento longínquo só porque há uma guerra, como aconteceu com a pandemia. As pessoas enchem as igrejas, fiéis disseram-nos que reencontraram os rituais depois do início da invasão. Nos primeiros 15 dias, mesmo durante a semana, as igrejas chegaram a ter gente a rezar à porta, quase todas têm altifalantes para que possa ouvir a Palavra na rua. 

Três quilómetros a sul do templo do padre Sebastian fica a Igreja russa ortodoxa de São Jorge. Encontramos outro padre, de outra religião, que em poucos dias é alvo da fúria dos ucranianos, como tudo quanto representa a Rússia, mesmo a sua cultura, a religião dominante. “Sou de Mariupol, não falo com a minha mãe há cinco dias, se calhar já não está viva. Estavam cinco com ela no apartamento, nenhum está contactável”. É a primeira frase que diz ao Expresso o padre Lourenço, nome que escolhe para não usar o seu, quando nos sentamos com ele, prometendo não gravar a sua voz nem fotografar o seu rosto. 

Não tem autorização para falar do que tem sucedido na igreja, que segue o rito ortodoxo russo, mas quer dizer algo, mesmo a um jornal português, espiritual e geograficamente distante. “Não somos como o homem que manda em nós e por isso demos apoio ao processo de cisão, vamos ser autónomos, quer Moscovo aprove quer não”, diz, referindo-se ao Patriarca Kirill, bispo de Moscovo, figura mais alta da Igreja Ortodoxa Russa, que considerou que a guerra na Ucrânia é culpa do “orgulho gay”. “Nunca pensei que o Patriarca fosse capaz de dizer tão abertamente que apoia a guerra, é a única voz que os russos ouvem, mesmo os mais isolados, os mais sujeitos à propaganda, além da de Putin. Podia ter feito a diferença, condenado a violência, os russos ficariam ao menos a pensar, mas não, então os padres da Igreja Ortodoxa Ucraniana deixaram de o mencionar nas missas, o que nunca acontecera.” 

A sua congregação tem cerca de 300 pessoas, “todas falam russo, cresceram nesta religião, mas nenhuma tem passaporte russo ou se sente russa, que eu saiba”. O que não impede que o espaço onde dá missa já tenha sido alvo de ataques xenófobos. “Russos, fora”, dizia o lençol que encontrou amarrado às grades a 25 de fevereiro, um dia após o início do conflito. “São jovens que não conseguem combater, querem fazer algo, dar uso ao ódio que sentem, não entendem que estão a atacar ucranianos. É errado e não deve ser tolerado, mas não surpreende.”

A desconfiança em relação a quem vem de zonas com grande percentagem de russófonos não é nova no ocidente da Ucrânia. Quando foi enviado para Lviv, há quatro anos, também teve dificuldades, estávamos a meio da guerra na província de Donbas.

Ao lado da igreja há uma estrutura prefabricada onde Lourenço tem recebido centenas de refugiados, quase todos do leste russófono. “Não vêm pedir-me ajuda por estarem a ser atacados por ucranianos, vêm porque estão a ser atacados por russos”. Toca o telefone: Hello darkness my old friend, I came to talk to you again. É o telefone pessoal, mas ainda não foi desta que recebeu notícias da família.

No dia em nos recebeu, a maternidade de Mariupol fora bombardeada, a imagem da mãe em trabalho de parto, gravemente ferida, numa maca com a mão na barriga, corria e chocava o mundo. Da Rússia, amigos e familiares defendem que devem deixar os russos entrar e ajudar. “Ajudar em quê?”, pergunta-se o padre, a pensar alto. “É do outro mundo. Somos irmãos espirituais, mas matamo-nos no mundo físico, como Caim a Abel.”

Depois de passarem vistoria à igreja, um amigo do FSB, os serviços secretos ucranianos, veio dizer-lhe pessoalmente para evitar ligar para a Rússia, mesmo para familiares, porque tudo é motivo de desconfiança para as autoridades, com ou sem razão.

A fábrica de cocktails Molotov

Muita gente guarda garrafas nas suas casas e garagens, óleo de motor e gasolina, para o caso de os tanques chegarem aos centros da cidade e cada família ter de fazer voar das janelas esses engenhos explosivos rudimentares que o mundo conhece como “cocktails molotov”. Não há muitas fábricas que os façam para “exportação”.

A cerca de 20 quilómetros de Lviv, numa zona industrial, fica uma dessas fábricas, na altura a única a produzir 1000 exemplares por dia. Um mês depois da guerra, a reconversão de atividade já terá chegado a muitas outras. É preciso um código para ir lá dar. “Onde posso comprar leite?”, pergunta a nossa tradutora, Marta, a um rapaz que não pode ter mais de 13 ou 14 anos, mas que se apresenta como o chefe da barricada que temos de passar para chegar à antiga fábrica de tintas. Foi o filho de Martha que lhe deu a senha. Kyryl tem 19 anos, estava no primeiro ano de Direito mas, como milhares de universitários, ajuda na resistência. Afasta-se e seguimos. 

Mais uma caixa pronta para seguir para Kiev. O cheiro a diluente obriga a semicerrar os olhos. Cinco homens de máscara levantam a cabeça do posto de trabalho uns segundos para ver quem chegou e voltam a enrolar fita adesiva nos gargalos à sua frente. “Acho que nem 12 horas tinham passado desde o início da guerra e já estávamos a fazer isto. Até há cinco dias era a fábrica de tintas dos meus pais, agora fazemos 1000 cocktails molotov por dia”, conta Oleg, de 27 anos, representante comercial da marca da família antes de tudo isto começar, há menos de 10 dias. 

Sacos de serapilheira cheios de garrafas, resmas de algodão, bidões de gasolina por todo o lado. Há dezenas de caixotes cheios. “Todas as noites levamos as caixas até Kiev, mas deixamos algumas nos postos de controlo que vamos encontrando”, diz Oleg. A capital está cercada pelo exército russo, apenas o sul está livre e é por lá que entram militares, jornalistas, ajuda e estas garrafas. Trabalha-se para o pior dos cenários, que é quando um russo estiver suficientemente perto para poder ser atingido por uma arma destas. “Espero que não venha a ser preciso atirar nem uma, espero que nenhum amigo tenha de as usar, que nenhum russo morra, que parem com esta invasão e nos deixem ser só um país normal, com os nossos problemas”, diz o jovem que gere a produção.

Mike usa um macacão salpicado de tinta branca, tem 37 anos e trabalhava na fábrica antes desta reconversão. Não é pacifista como Oleg, considera que se há invasão, estas garrafas mortíferas, às quais alguns em Lviv chamam “batido de Bandera”, devem ser utilizadas. Stepan Bandera é figura nada consensual na História da Ucrânia, herói da luta por um Estado independente para uns, para outros criminoso responsável pelo massacre de cidadãos polacos e, parcialmente, pelo Holocausto na Ucrânia. “Somos a última linha de defesa do mundo livre, não pensem que Putin vai parar aqui, está louco, já deu para ver, está isolado, o mundo odeia-o e ele pode querer ficar para a História à custa dos ucranianos.” 

Os habitantes de Lviv sentem-se orgulhosos depositários do espírito europeísta que, neste século, veio para a rua primeiro na Revolução Laranja (2004-2005), cor da campanha de Viktor Yushchenko, candidato presidencial próximo do ocidente que foi vítima não só de fraude eleitoral como de tentativa de envenenamento; depois, em 2013 e 2014, com a Revolução da Dignidade, de novo a favor de aproximação à União Europeia. Muito antes da União Soviética, Lviv foi centro do comércio da Europa Central, primeiro no império polaco, depois no austro-húngaro. Andando pelas ruas empedradas, ao pôr do sol gélido sobre o verde-claro da arte-nova vienense, o sentimento é o de um ocidental. 

Nos prédios onde agora se recolhem assinaturas para os batalhões civis, as filas para a inscrição das Brigadas Territoriais de Defesa chegam a dar a volta à esquina. Muitos nem estão a conseguir inscrever-se, tal o número de candidatos. Foi o que passou com Zahkar Chyzhnor, Kyryl Pyrih e Kukhov Markiyah, estudantes de Direito de Lviv, todos com 19 anos. “Hoje não conseguimos, mas vamos aproveitar para comprar uniformes e botas”. Já está escuro, mas há tempo, antes do recolher obrigatório às 22h, para acompanharmos os amigos nesta iniciação militar. É uma rua estreita e quase sem iluminação. A loja não é mais do que um corredor, a porta de entrada é baça e só podem entrar duas pessoas de cada vez. 

Dois homens com escadotes estão do outro lado da rua a retirar da parede, com um pé de cabra, as placas de metal que têm os nomes das ruas. Táticas da resistência francesa. Chamam a polícia mal dão pela presença de um fotógrafo e temos de prometer que nada vai parar à internet. É constante o pedido para que desliguemos a geolocalização nos telemóveis.

Zakhar tinha estágio numa empresa de advogados. “Há uma semana estava a pensar nos exames e contente por ter um primeiro emprego. Agora a única certeza é que tenho de ajudar o nosso exército. Em Kiev, onde estudo, os meus amigos estão apavorados, temos mesmo de lutar.” Também Kyryl mudou o foco. “Em horas, deixei de pensar no meu futuro para pensar no da minha cidade. Sabíamos que a Rússia poderia tentar atacar e conquistar mais território, mas estamos confrontados com uma tentativa de anexação, pura e dura”. Muitos dizem que sempre estiveram à espera desta guerra, não é o caso de Kukhov. “Esperava que fossem entrar em Donbas, tomar mais um bocado da província, mas não Kiev nem qualquer outra cidade. Temos de recuperar todas as nossas fronteiras, incluindo a Crimeia e Donbas, é isso ou nada.” A loja de indumentária militar também tem fila à porta. “Nem almocei”, diz a dona, que não quer falar mais. 

Cada um faz a sua parte. Oleg Klynovskyj e Igor Turek, mecânicos e motards, usam as oficinas para soldar vigas de ferro e criar “enormes ouriços-caixeiros de metal” que possam deter tanques e outros veículos inimigos. “Ficámos surpreendidos umas duas horas, um pouco atarantados, mas depois de almoço já estávamos a soldar”, diz Oleg.

“Aprendemos isto há muitos anos, tivemos muitas guerras, revoluções. Os meus avós estiveram na Sibéria, nos gulags, e a família ficou, viu-se sem forma de subsistência, porque Estaline obrigou os agricultores a enviar a produção para ele, em vez de a venderem como sempre tinham conseguido fazer”, conta Igor Turek.

Já a família de Oleg foi retirada de casa à força, nos territórios do sueste polaco, em 1947, como pelo menos 150 mil pessoas. A operação Vístula, nome do rio pelo qual ficou conhecida, visava retirar o apoio logístico, material e humano que os ucranianos residentes no atual território polaco prestavam aos compatriotas que lutavam por um Estado independente.

Historiadores nas horas vagas e exploradores, de mota, claro, de monumentos perdidos pelas montanhas do país, veem com desconfiança a entrada da Ucrânia na UE, pelas mesmas razões que detestam o coletivismo estalinista. “Não precisamos de nova identidade, russa ou europeia”, diz Oleg. “Sempre fomos uma nação de agricultores e pequenos empresários e não queremos aderir à UE, provavelmente isso iria prejudicar a nossa autossuficiência, como se viu em outros países”, diz Igor, que do Ocidente só quer “ajuda militar”. “Economicamente conseguimos encontrar caminhos, fazemos negócio com toda a gente, desde o século XVI. Se a Rússia sair e parar de destruir as fábricas e a vida das pessoas, fica tudo bem.” 

Museu Etnográfico de Lviv

Os sacos de areia tapam as janelas mais pequenas junto ao solo. O Museu Etnográfico e de Artes Decorativas de Lviv tem as janelas entaipadas com ripas de madeira e pedaços de alumínio. Funcionários da autarquia passaram dois dias a prender estas proteções com arames, contra projéteis ou estilhaços que possam resultar de qualquer explosão. É o coração da cidade, se a guerra vier toda a Ucrânia estará em guerra. Antes da invasão, a principal exposição do museu foi uma retroespetiva de Volodymyr Patik, um dos mais importantes pintores da cidade no século XX, falecido em 2016. A sua mulher, Romanna Vassylyna, tem 87 anos, e os quadros que não estão no museu encerrado estão na sua casa, que também é praticamente um museu.

“Já não vou para a cave quando ouço as sirenes, durante a II Guerra Mundial vivíamos praticamente debaixo do solo, semanas seguidas”

Às 4 da manhã de 24 de fevereiro de 2022, uma nova guerra começou, sem que as feridas anteriores estivessem saradas. “Na II Guerra Mundial aprendi uma coisa muito importante: não há invasores que sejam libertadores. Quando os alemães chegaram para nos libertarem dos russos, que quebravam copos de vodca nos passeios e batiam em toda a gente, achámos que eram uns senhores, civilizados e educados. Mas um dia vi da minha janela, ao pé da estação de Lviv, um alemão a retirar uma criança judia dos braços de uma mãe e a atirá-la para uma fogueira. Depois os russos venceram os nazis e mandaram milhões para morrer nos gulags da Sibéria”. Esta não é uma guerra de precisão, é uma guerra de bombas que arrasaram prédios civis, escolas e hospitais. É Grozny e Alepo, mas é também Belgrado, atual Sérvia, ex-Jugoslávia, em 1999, quando a NATO arrasou cidades inteiras em retaliação contra os massacres constantes de albaneses. Como diz Romanna, não há invasores bons. E o seu país está a ser invadido.

“Por causa do grau de violência das guerras mundiais, habituámo-nos a pensar que as pessoas daqueles tempos eram muito mais corajosas do que agora, mas não é verdade. O meu pai deu enterro digno a um alemão quando os alemães eram o inimigo, isso é coragem. Com cinco ou seis anos, lembro-me de ver gente a parar tanques com as mãos, como agora. Há ucranianos a dar comida aos russos, ainda agora.”

Até 1991, a língua ucraniana foi falada em sussurro. “Quando um povo é forçado a esquecer a língua dos seus poetas, o coração desse povo torna-se pedra”, diz Romanna, que se levanta para ir buscar um livro de Taras Shevchenko, poeta, pintor, retratista, venerado pelos ucranianos, considerado pai da língua, preso por czares da Rússia Imperial por escrever com ela. “Deus mandou-nos os russos, mas também nos mandou Shevchenko.” Para os ucranianos, a beligerância de Putin contra os supostos nazis que dominam a Ucrânia é risível, ainda que trágica. Enquanto os livros nos ensinam que a II Guerra Mundial foi maioritariamente entre alemães e russos, por vezes esquecemos que a maioria das batalhas aconteceu em território hoje da Ucrânia e Bielorrússia. Pelo menos 3,5 milhões de ucranianos morreram em resultado das políticas de extermínio nazi entre 1941 e 1945; outros três milhões a combater os nazis ao lado do Exército Vermelho.

O papel desta antiga ginecóloga, que trabalhou até aos 73 anos, tem sido ajudar quem chega à estação de comboios de Lviv. Todos os dias vai até lá, cozinha, dá rebuçados às crianças, fala de literatura e de história. Diz que nenhuma guerra com os russos foi culpa dos cidadãos, apenas dos seus líderes. Num antigo caderno de recibos escreve todos os dias o que ouve aos refugiados internos, os números dos que fugiram, as palavras de Putin e as de Zelensky. “Durante três séculos fomos escravizados, destruíram as nossas casas, as nossas igrejas, queimaram os nossos livros, há um ódio que nos construiu. É a nossa primeira guerra, a primeira em que não lutamos por outra bandeira, somos independentes. É uma bênção e temos de estar preparados para dar a vida por ela.”

É por uma frase quase igual que começa a conversa com Alexander Denysenko, realizador premiado da curta-metragem “Wonderwall”, sobre a vida na zona de exclusão de Chernobyl. A radiação, emanada pelo desastre de 1986 na central nuclear no norte da Ucrânia, desativada em 2020 e atualmente sob controlo russo, foi centenas de vezes superior à que resultou da bomba atómica de Hiroxima. Perda, renovação, futuro são os temas centrais da obra mais conhecida de Denysenko, de 39 anos. “Ontem éramos todos uma coisa, hoje somos outra. E se não estivermos dispostos a morrer, nunca seremos livres.”

Na página oficial da curta, onde explica os temas da obra, Alexander escreveu: “Um fardo assim não pode carregar-se para sempre, ainda mais quando somos novos e temos toda uma vida pela frente. É preciso reinvestir a energia emocional”. Referia-se ao peso da perda, experimentado pela personagem principal, quando morre a mulher que ama. Na Ucrânia, observa uma mudança parecida. “Até à Revolução da Dignidade, os heróis na nossa literatura eram vítimas, em constante sofrimento, agora o herói ucraniano é normal, com liberdade para procurar ser feliz, sem impedimentos superiores, não é vítima, não interessa se vence ou se perde no final, a mudança de identidade que se deu no país depois de Maidan é um autêntico movimento de placas tectónicas”, diz.

Há um “novo herói moderno” e é por essa imagem “que hoje se luta nas ruas”. Denysenko vê as coisas de forma simples, ou pelo menos, dizendo-as, assim parecem: “O ucraniano faz parte do mundo. A nossa identidade não serve para nos tornar diferentes, especiais, únicos, ao ponto de sermos tão únicos que nos isolamos. Uma identidade é o que usamos para nos misturarmos e nos unirmos aos outros.” Maidan “só teve a força que teve porque cada uma daquelas pessoas tinha razões pessoais para protestar: cada uma tinha o seu próprio plano de vida, todas queriam poder escolher um caminho, foi isso que nos levou à rua”. 

Horas antes da invasão, o realizador não acreditava que a guerra total fosse chegar. “Pensei sempre que seria demasiada loucura. ” Face à realidade, há que moldar alguma arte. Com a equipa, tinha já escrito um guião para o novo filme, havia uma atriz americana contratada, as localizações, em Lviv, estavam escolhidas. Mas em poucas horas tudo mudou. “Já não tenho guião e estou feliz por não ter, tudo mudou, a cidade, a mentalidade, houve uma belíssima transformação na nossa personalidade, na nossa consciência coletiva, já não posso filmar uma Lviv normal, os objetivos das personagens não podem ser os mesmos, os seus medos, os seus sonhos.”

Em abril ia inaugurar com o pai, pintor, uma exposição em Nova Iorque, mas os quadros estão no armazém da DHL. Cinco toneladas de arte que nem arte é ainda, já que a arte só acontece na interação com quem a experimenta.

Sede da Administração Regional

Lviv foi a única região que não votou em Volodymyr Zelensky em 2019. Os habitantes preferiram dar mais uma oportunidade ao Presidente Petro Poroshenko, do partido Solidariedade Europeia. Desde o início da guerra, Zelensky tem sido entrevistado e fotografado ao lado dos militares, vestido como eles, de colete antibalas, arma ao ombro, nas linhas de defesa da capital. Até à eclosão da guerra, muitos ucranianos, incluindo o ex-Presidente, acusavam Zelensky de usar o seu poder para minar a oposição com processos judiciais, um deles contra Poroshenko, por alegadas ligações e financiamento aos grupos separatistas que operam em Donbas. A 20 de dezembro de 2021, as autoridades ucranianas abriram investigação por “traição” a Poroshenko, como tinham feito ao deputado pró-Rússia Viktor Medvedchuk, em prisão domiciliária há mais de seis meses. Há dezenas de investigações contra inimigos políticos de Zelensky. O encerramento do jornal “Kyiv Post” (reaberto como “Kyiv Independent”) em outubro de 2021, por ordem de um importante magnata de Odessa, Adnan Kivan, foi atribuído a pressões do próprio Zelensky. O seu porta-voz negou as acusações. 

Domingo, dia 20 de março, Zelensky anunciou que, até ao fim da lei marcial, 11 forças políticas não vão poder ter atividade. São conotadas com a Rússia ou com a esquerda que o Governo de Zelensky associa aos russos, com mais razão nuns casos e menos noutros. Não fosse o estatuto de guerreiro pela liberdade que a comunidade internacional lhe conferiu, esta ação seria repudiada, como foram os casos judiciais contra opositores. Porém, o regresso da História à Europa deixa de lado qualquer crítica ao Presidente ucraniano, ex-ator de 44 anos que chegou a trabalhar como palhaço e utiliza agora os seus dotes de comunicador para levantar em ovação os deputados de parlamentos europeus e até o Congresso dos Estados Unidos. Nada antes de Zelensky, nos últimos dez anos, foi capaz de colocar republicanos e democratas a bater palmas ao mesmo tempo. Mas o presidente ucraniano, antes de unir o mundo, parece ter sido consensual no seu país, até nas regiões com maior percentagem de falantes de russo.

O afastamento do Partido Comunista das eleições, em 2015, mancha a vitória de Zelensky, ainda que não tenha tido influência na decisão. Em todo o caso, até em Kharkiv, onde são comuns manifestações contra as elites pró-UE, os partidos que deveriam recolher as simpatias dos próximos de Moscovo não somaram votos suficientes para vencer: 40%, contra os 43% de Zelensky.

O partido do Presidente tem um nome populista: Servente do Povo. Não foi pensado para o movimento que o elevou à presidência, antes para título da série de televisão irónica sobre a ascensão de um professor de liceu à chefia do Estado. 

Estreada em 2015, a série foi um sucesso estrondoso, também na Rússia. No primeiro episódio, um aluno grava um discurso inflamado do professor contra a corrupção na Ucrânia, publica-o no YouTube e, de desconhecido, o professor passa a sensação da internet e, depois, candidato à presidência. A guerra ainda não tinha feito um mês e havia análises digitais às ferramentas da oratória de Zelensky. Não poucas citavam os fundamentos da retórica aristotélica. Como escreve a “New Yorker”, “o ponto central é claro: os palhaços destroem a ordem para nos fazer imaginar outro mundo”. Por outras palavras: “A suavidade, o absurdo e as gargalhadas ajudam a ver além da autoridade brutal, em direção a uma vida mais livre. A dignidade está disponível a quem sorri perante a degradação e a quem não se importa de se denegrir conscientemente, como faz um palhaço. Será o mais capaz de agir com dignidade depois dos momentos degradantes.” 

Nos autocarros as pessoas vão sentadas a ouvir os discursos de Zelensky e as análises aos mesmos em cadeias internacionais. Nos cafés há um silêncio automático quando aparece, mesmo que seja apenas um plano de corte, uma imagem sem som, para ilustrar outra notícia. 

O Governador da província de Lviv e responsável máximo das Unidades Territoriais de Defesa da região, Maksym Kozytsky, foi nomeado diretamente por Zelensky (mas proposto, entre outros nomes, pelo parlamento) e diz que não teria aceitado (é cirurgião) se não acreditasse na liderança do Presidente. A ideia de que há um novo muro a erguer-se na Europa tem sido constante nos discursos de Zelensky. “É muito fácil falar dos valores europeus, é mais difícil lutar por eles. Estamos a salvar ideias, não lojas nem casas, nem a arquitetura. Estamos a lutar por uma forma livre de pensar. Não temos algemas mentais nem físicas.” 

Um quilómetro para leste, passando pela estátua de homenagem a Taras Shevchenko fica o parque Ivan Franko, outro adorado poeta ucraniano que foi jornalista, economista, filósofo, crítico literário, economista e tradutor de alguns dos mais importantes escritores do Ocidente: Shakespeare, Byron, Dante, Goethe. O parque que tem o seu nome já foi o Jardim Jesuíta, na República de Veneza, o Stadtpark, no império austro-húngaro, e o parque Kościuszko, quando Lviv pertencia à Polónia. De 1914 a 1945 Lviv mudou de mãos oito vezes.  Por volta das 11h da manhã no dia em que visitámos o parque, as sirenes soaram. “Atenção, por favor. Isto é um alerta de ataque aéreo. Prossigam para o abrigo mais próximo.”

Nos primeiros dias, qualquer sirene esvaziava a cidade. Havia poucos carros nas ruas e quase ninguém nos jardins. Ao quinto dia as sirenes tornaram-se menos comuns, e já quase ninguém se apressava a entrar nas igrejas e hotéis apetrechados com caves para proteção de civis. No parque há um grupo de voluntários a limpar o entulho e o lixo de uma série de abrigos. Um deles, curvado, velho, vem fumar um cigarro cá fora. Escrevemos no tradutor do telemóvel a pergunta: “Este abrigo é muito antigo?” Tira do bolso um telefone pequeno, sujo, sem ecrã tátil, e marca nas teclas: 1945.

Lypnyky

A guerra intensifica a leste, já não vai acabar “nos próximos dias”, o otimismo não desapareceu, mas vai-se esbatendo. Nas ruas, a preparação para a chegada das tropas russas aumenta, principalmente nas estradas à volta de Lviv. Sair não é tão difícil quanto entrar, mas há filas nos postos de verificação de documentos, barricadas de sacos areia, pneus empilhados, tijolos de cimento e separadores de betão que obrigam carros a fazer curvas e contracurvas. 

Em direção à aldeia de Lypnyky, com menos de 500 habitantes, passamos por Vynnyky, a 10 quilómetros do centro de Lviv. Pelo menos 50 homens protegem aquela que é uma das principais entradas da cidade. Voltam a perguntar-nos se temos a geolocalização desligada. Fotografias só aos pormenores: a braçadeira amarela feita de fita isoladora que os voluntários usam nas mangas, por cima dos kispos, os sacos de areia, a caixa de cocktails molotov. O prefeito, Bohadan Shanster, coordena operações. “Esta é a primeira linha de defesa, estamos a construir checkpoints por todo o oeste. A maioria dos homens aqui já esteve em Donbas, têm experiência militar e podem ser chamados a qualquer momento.” Os turnos são de seis horas, 20 homens de cada vez, mas “podem estar aqui 300, se houver sinal de perigo nem preciso de chamar, aparecem”.

À entrada de Lypnyky há mais um destes postos de vigilância. Estão aqui quatro homens: um engenheiro, um professor de matemática, um relojoeiro e um ex-guarda prisional. Falam ao mesmo tempo, mas dizem a mesma coisa. “Putin perdeu totalmente a cabeça”, “A Rússia não entende que não vamos mesmo desistir”, “É uma barbárie autêntica, é de loucos”. Lançam frases e voltam aos seus postos, atrás dos sacos de areia. 

Na associação recreativa local pelo menos 20 pessoas montam um tapete de camuflado gigante, entrelaçam pedaços de tecido de tons de verde numa rede de corda, esticada e pendurada numa estrutura de madeira, para toda a gente ter um pedaço onde trabalhar.

Há um palco na sala, a 15 de março ia disputar-se a final de um concurso de poesia para jovens dos liceus. Ninguém sabe quando as crianças vão voltar à escola. No quadro da escola primária alguém pintou duas bandeiras da Ucrânia e no meio uma data: 24/02/2022. Em todas as salas há sacos de roupas quentes, cobertores, botas resistentes, brinquedos e medicamentos. Todos os dias chegam refugiados das cidades onde falta água, luz, comida. “Uma menina de seis anos veio com os sapatos do avô”, conta Mykola Kadykalo, deputado, que voltou da capital para ajudar a sua vila no primeiro dia da guerra. “Não queremos esta guerra, mas as populações que têm mais afinidades com a Rússia também não. Putin foi o político mais eficaz desta nação até agora, nunca ninguém nos conseguiu unir de forma tão intensa”, comenta. “Não sei o que aí vem, foi chocante, não se entende, o que vai ser desta terra, se vamos conseguir defendê-la, se vamos ter de morrer para proteger a nossa família.”

A economia da aldeia parou, só os supermercados subsistem. Nem em Lviv há grandes lojas de roupa abertas, os restaurantes servem até às 18h ou 19h. No terceiro dia de guerra, o álcool foi proibido. Toda a gente tem outras ocupações, a maior parte reza como se fosse obrigação. Às 19h, em Lypnyky como noutras aldeias e vilas, a comunidade reza o terço no largo da igreja, nos salões de festa, em casa do padre ou na escola, dependendo da temperatura.

À saída da aldeia há mais um checkpoint, onde encontramos Andryi Larchenko, ex-engenheiro informático de 32 anos que pediu licença sem vencimento para ajudar nos checkpoints. Vivia num apartamento moderno perto de Lviv, com a mulher e uma filha de dois anos, agora vive em casa dos pais e trouxe os sogros.

“Vivíamos perto de uma base militar, mas terça-feira acordámos com as sirenes e trouxe a minha mulher e os pais dela, que já não podem andar a subir e a descer escadas para irem para o abrigo antiaéreo e vivem perto do aeroporto de Lviv.” A “pátria independente” é expressão constante na lista de razões que estes homens apresentam para terem abandonado “a vida regular”, como diz Andryi.

Vinoteca Praha

Um dos mais famosos restaurantes de Lviv, a Vinoteca Praha, no centro da cidade velha, está transformado em linha de montagem de kits de sobrevivência. Todas as madrugadas, as carrinhas seguem o caminho das necessidades mais urgentes, umas para leste, outras para oeste. As mesas onde os clientes se sentavam foram alinhadas num enorme retângulo onde sete jovens voluntários, deslocados de Kiev e ex-trabalhadores na área da restauração, cortam tiras de queijo e fiambre que passam aos colegas para fazer sanduíches.

Há caixas de maçãs empilhadas em todas as esquinas, sacos de pão às fatias, café em pó, chá, paletes de água, barras de cereais e sumos individuais. Mas também há mobília de campismo, ainda nas caixas e por montar: tendas grandes como nos casamentos para proteger os voluntários da neve enquanto entregam comida, mesas de plástico, cadeiras, tudo em caixas de cartão castanho com instruções impressas de lado.

Há botijas de gás e fogões portáteis, vasilhas de 50 litros para conservar a água a ferver e servir bebidas quentes em qualquer lado; outras, vazias, enchem-se apenas quando da cozinha saem sopas e guisados que precisem de se conservar quentes até ao destino. Luda Gohadarievk é a sócia maioritária do Praha e tira cafés para os motoristas das carrinhas. “As pessoas ajudam como podem, por acaso tenho uma cozinha industrial. É a minha cidade, o meu país, ninguém vai fazer isto por nós.” O marido é dinamarquês, o filho está fora com o pai, mas para Luda “não há volta, é ficar até ao fim”. E que fim? “Ninguém sabe.  Putin é louco. Não podemos pará-lo, mas o mundo todo pode.” 

Os restaurantes têm a facilidade de já ter cozinhas, mas muitos outros edifícios de Lviv recolhem doações de comida. O Museu das Artes está cheio de caixotes com todo o tipo de mantimentos: pilhas de bolachas, enlatados, roupa por estrear, botas de escalada, gorros, colchões, sacos-cama, até micro-ondas e torradeiras. Voluntários são dezenas, fazem a triagem dos objetos para os militares e para os refugiados internos. 

Quem está a organizar as doações é Yarena Shernavska, vereadora da cultura de Lviv. “Precisamos de medicamentos, muitos, coisas básicas como inflamatórios ou fortes, para as dores. Botas e roupa o mais quente possível, e toalhitas húmidas, todas serão poucas, porque nos abrigos nem sempre há forma de tomar banho regularmente”. Não acredita que a guerra chegue a Lviv, apesar dos rumores. “Nunca vamos ceder, não é por sermos heróis, mas a perspetiva de viver sob domínio de um homem que nos odeia não é suportável. Imaginam o que iria fazer?”

Sem aviso prévio, e sem qualquer som da rua, três homens mandam toda a gente começar a descer uma escada. Em 20 segundos ouvimos a razão da evacuação: ecoam as sirenes. Entramos num corredor estreito, só há luzes de presença, alaranjadas, são as tubagens decrépitas do edifício. Centenas de metros de tubos a perder o revestimento, outros já ferrugentos. De forma espontânea, todos começam a cantar o hino. Circulam bolos pelo corredor, as pessoas tiram um pedaço e esperam que o hino acabe para comer.

Lutsk

As principais obras de arte estão guardadas num sítio secreto, levadas para uma cave  reforçada com placas de zinco e barrotes de madeira no dia em que a guerra começou. As salas do Museu Korsak de Arte Contemporânea, no noroeste da Ucrânia, a 150 quilómetros da Bielorrússia, perderam as telas e as instalações e tornaram-se salas de aula para quem quer aprender a montar, carregar e disparar uma arma. O dono do espaço, Victor Korsak, magnata do retalho, cedeu todo o espaço à resistência. 

À entrada, ao lado de um quadro de inspiração pontilhista, está uma folha A1 com dois desenhos da mesma arma: uma Kalashnikov. No de cima está inteira, no de baixo distingue-se-lhe o esqueleto, as ranhuras e os pequenos túneis, o repositório da pólvora, o mecanismo de recarregamento de cartuchos.

Ávidos, quase todos os rostos são jovens. À volta de cada mesa onde instrutores explicam os passos básicos para manusear uma arma, há pequenas multidões. Chega a vez de Yulia Harzyliuk, cabelos loiros ondulados por baixo de um gorro preto. Calças cor de azeitona e botas de atilhos. Ouve outra vez as explicações e pega na Kalashnikov.

Puxar o manobrador da culatra, que faz com que um novo cartucho entre no cano da arma, não é como nos filmes, Yulia não consegue à primeira. Tenta outra vez, já tem a arma quase apontada ao teto e para conseguir puxar essa peça tem de apoiar o cabo de madeira na coxa. 

Da segunda vez corre melhor. Tenta mais uma vez, cada vez melhor. O movimento torna-se rápido e Yulia faz pontaria à tela à sua frente. Prime o gatilho. Tic. Não há combustão, não há bala. Outra rapariga aproxima-se, Yulia tem de dar a vez. “Não me deixam entrar nas Brigadas Territoriais de Defesa, estão muitos homens à frente na lista e mesmo eles não têm conseguido, é muita gente. Entendo, mas quero lutar”, diz a jovem, que, com 18 anos, tinha pensado viajar pela Europa antes de escolher um curso universitário. “Foi a primeira vez que peguei numa arma, mas não é estranho. Temos de defender o país.”  

Mesmo ao lado do museu, está o Centro Comerical Adrenalin, também propriedade de Korsak, que tem outros supermercados e superfícies comerciais. “No primeiro dia fiquei deprimido, o dia todo fechado. Depois reuni-me com os gerentes de todas as superfícies, quatro ou cinco horas, e decidimos que tínhamos de transformar os espaços em polos de auxílio”, diz o empresário, que tem centenas de caixinhas com balas no escritório.

Diz que o seu maior trunfo é o dinheiro e os espaços de que dispõe, mas se os russos chegarem é com a espingarda que tem ao lado da secretária que vai defender os seus. “Tenho amigos russos que me ligam de Moscovo a pedir desculpa, dizem que não sabem o que podem fazer além de se manifestarem. Qualquer agressão a falantes de russo é indefensável, mas entendo a imensa raiva de algumas pessoas”. Um dos seus hotéis já tinha 100 deslocados ao sexto dia de guerra, entretanto Viktor já nos voltou a falar: tem já 1000 camas, e todas estavam ocupadas ao 10º dia.

Numa sala que já foi o cinema do Adrenalin, leciona-se a teoria. Do meio da plateia levanta-se um homem, novo, fala para o chão, pedem-lhe que fale mais alto. “Há alguma diferença entre esse processo de reanimação que acabou de explicar e o que temos de fazer se a vítima for uma criança de três anos”? Senta-se. A médica, com um microfone de conferência para chegar às 300 pessoas, informa que para crianças pequenas apenas uma mão deve ser usada para pressionar a zona do coração, dois dedos apenas se for a reanimação de um bebé. Mais perguntas? 

Outra jovem pergunta quantas vezes se deve repetir o movimento de reanimação. Reformula: “Como sabemos que a pessoa está mesmo morta e não vale a pena continuar?” “Depois de 20 minutos sem qualquer sinal de vida.” 

Logo no primeiro dia de guerra, o aeroporto que serve Lutsk foi atingido e já não funciona. As sirenes são ruído comum na cidade, houve dias em que tocaram mais de uma dezena de vezes. Nas primeiras semanas de guerra, os meios de comunicação partilharam atos de patriotismo por parte de grupos de ucranianos desarmados que gritavam aos russos para saírem das suas cidades. “Quando apontei aquela arma, na minha cabeça estava a defendê-los a eles, às pessoas que param os tanques com as mãos e que se embrulham na nossa bandeira para irem trabalhar, mesmo com militares russos na rua e que gritam pela liberdade sabendo que podem levar um tiro. A arma serve para proteger essas pessoas”, diz Yulia, 18 anos. “Tens medo?” “Sim, como todos, até o militar mais experiente tem medo, mas a emoção dá lugar à raiva. Não tenho grande orgulho de sentir as coisas que por vezes sinto dentro de mim, mas para países como a Ucrânia, sempre atacada, ao longo de décadas, a raiva é um sentimento muito útil”.

Créditos

Texto Ana França
Fotografia e vídeo Tiago Miranda
Infografia Jaime Figueiredo
Edição vídeo Carlos Paes e José Cedovim Pinto
Webdesign Tiago Pereira Santos
Apoio web João Melancia
Coordenação Joana Beleza e Pedro Cordeiro
Direção João Vieira Pereira

Expresso 2022