Vidas longas que a pandemia abalou

Quase dois anos depois do início desta tormenta que virou o mundo do avesso fomos falar com quatro mulheres e três homens, com muitos anos de vida, para partilharem as suas inquietações, medos e reflexões sobre o impacto deste vírus que fragiliza em especial os mais velhos e não tem fim à vista

“Preocupa-me o isolamento
e a saúde mental dos mais velhos”

Leonoreta Leitão, 92 anos, Poeta e professora 

“É importante não desistirmos
e não nos abandonarmos” 

Maria Dulce Palma Rosa, 77 anos, Supervisora da TAP reformada

“Acordo às 4 horas da manhã para escrever” 

Galopim de Carvalho, 90 anos, Geólogo e professor jubilado

Leonoreta Leitão

92 anos, Poeta e professora

“Preocupa-me o isolamento
e a saúde mental dos mais velhos”

Até começar esta tormenta tinha uma vida social e cívica muito ativa, organizava até conversas na biblioteca de Alvalade. Agora estou mais em casa. Não estou propriamente deprimida, porque leio muitos livros. Por vezes leio-os na varanda enquanto apanho sol. O último livro que comprei foi o da Patrícia Reis (Da Meia Noite às Seis). Gosto de ler também os romances e as crónicas da Dulce Maria Cardoso. E gostei do último livro do Miguel Carvalho sobre a Amália. (Amália Ditadura e Revolução - A História Secreta) Achei uma obra curiosa. Também escrevo, há tempos escrevi um conto. De resto, na televisão vejo as séries da RTP2, acompanho também na televisão as conversas da Júlia Pinheiro e do Manuel Luís Goucha. E na rádio ouço as conversas da Inês Maria Meneses na RDP.

E ainda vou tomar uns cafés com amigos do meu bairro na Avenida da Igreja, em Alvalade. 

Há dois momentos do dia em que tenho de telefonar para alguém porque me sinto só. É entre as 14h e as 15h e entre as 18h e as 19h. Percorro a minha lista telefónica de A a Z. E quando acabo, volto ao início. Agora estou outra vez na letra “P”. Tenho muitos amigos, que são antigos alunos e colegas, porque ensinei em 13 estabelecimentos de ensino onde fui professora de português, francês, literatura portuguesa e literatura para crianças. Julgo que lhes soube passar o gosto pela leitura e literatura.

Sou uma privilegiada. A minha reforma dá-me para estar confortavelmente na minha casa, com certos apoios. Tenho uma empregada que vem cá dormir, um afilhado que me ajuda nas tarefas do computador - que chamo de ‘meu secretário’ - um sobrinho que me ampara e 3 médicos que me assistem. Mas como sou uma cidadã consciente, preocupa-me o reflexo desta pandemia no meu país. Não só na economia, como na cultura, nos pobres que aumentam. Preocupa-me também o isolamento, a falta de apoio e a saúde mental dos mais velhos nesta pandemia, que poderão estar mais deprimidos e doentes. E não são devidamente tratados com outras maleitas que tenham. Sabe, não gosto do nome ‘idosos’ ou ‘séniores’. Somos velhos, pronto. 

Aos 92 anos, apesar da pandemia, ainda me sinto satisfeita por viver. Que a vida vale a pena. Ainda há muitos livros para ler, e muito para ver e conversar. 

Reli recentemente o livro “Podem chamar-me Eurídice”, do Orlando da Costa, pai do primeiro-ministro António Costa, que foi meu amigo. Está lá descrita uma reunião clandestina num quarto que conheci do [primeiro presidente do MPLA] Mário Pinto de Andrade. Tive uma família ligada à política e na faculdade sempre me liguei a pessoas de esquerda.

Devo dizer também que me preocuparam estas últimas eleições legislativas. Surpreendeu-me que muitos jovens não quisessem votar. Não viveram no tempo da ditadura do Estado Novo e não têm ideia do lucro que é haver eleições livres. Como sabem, durante muitos anos nós mulheres não pudemos votar. Foi uma grande vitória podermos passar a fazê-lo. Nas primeiras eleições livres cheguei a ser presidente de uma assembleia de voto. Preocupa-me bastante esta extrema-direita que é também ela um vírus. 

Gosto muito de poesia. Estive tuberculosa entre os 15 e os 17 anos e, nessa altura, escrevi o meu primeiro poema que dizia assim: “Oh morte não venhas cedo, não é que eu sinta receio d´outro mundo que começa e não chega a existir, mas se vieres vem depressa, não me dês tempo a sentir que deixei a vida em meio.” Sei ainda o poema de cor. Foi nessa altura que passei a usar boina. A minha mãe pensou na altura que devia usar uma boina para não me constipar. Tenho boinas de inverno de várias cores e outras tantas de verão que a minha mãe me fez para as várias 'toilettes'. Ainda hoje me conhecem por isso. Quando ligo para marcar mesa num certo restaurante digo: “Olhe, é aquela senhora da boina.”

Já não escrevo poesia. Mas ainda gosto de escrever cartas. Talvez um dia, depois de partir, se publiquem as muitas cartas de amor que troquei no passado. Às vezes penso: “de que é que vou morrer?” Essa preocupação aumentou com a pandemia. As pessoas que me conhecem dizem que vou viver até aos 100. Mas só quero chegar lá se ainda tiver a cabeça a funcionar bem e controlar as doenças que tenho, senão é preferível ir para os anjinhos, não é?

Maria Dulce Palma Rosa

77 anos, Supervisora da TAP reformada

“É importante não desistirmos e não nos abandonarmos”

Quando se falou a primeira vez de um confinamento pensei: “Talvez seja a altura de descansar e ler livros.” Mas nunca imaginei que durasse tanto. Dediquei-me a jardinar as rosas do meu jardim, às leituras - um grande refúgio para mim - e a distribuir os tantos livros que herdei. Li agora o “Pela Terra Alheia”, um livro de viagens do Ramalho Ortigão excepcionalmente escrito. E “Os Bichos”, de Miguel Torga.

Haja virtude nos silêncios. Poderei ser uma pessoa com alguma apetência solitária, mas não tenho solidão. E apesar do silêncio imposto, tenho que encontrar o lado bom dele. Fazermos silêncio dentro de nós é uma descoberta. Um dos melhores momentos do meu dia é a partir das onze da noite. É quando estou sozinha acompanhada das memórias que tenho dentro de mim muito vivas. Como as da minha irmã caçula que partiu um ano antes da pandemia, e as do meu marido que faleceu há 12 anos e com quem às vezes ainda ‘falo’.  

Nos últimos dois anos perdi muitos amigos. Uns com Covid-19, outros com problemas associados. Isso deu-me um abanão sobre a vida. O meu túnel ou horizonte estreitou. Tudo ficou reduzido à circunstância do agora. 

Há uns dias acabei de ler um livro do cardeal Tolentino Mendonça, que até na prosa tem poesia, e ele dizia que nós estamos no momento do ‘cisne negro’. E não percebi bem logo o que ele queria dizer. É uma imagem que se utiliza em economia, quando acontecem problemas económicos altamente improváveis e que estão muito cheios de pontos de interrogação. Assim estamos nós. Atravessamos um momento de cisne negro, sem a mesma esperança, porque com estas novas variantes não vemos saída. 

Tenho duas filhas e 5 netos maravilhosos que me têm dado um apoio que soube captar. Mas a pandemia afastou-os. Permitiu que a minha convivência diária com eles não fosse tão próxima, tão física, tão tátil. Sinto uma preocupação imensa de qualquer um de nós se contaminar. E isso abala. Porque sou uma avó que gosta de os ter ao colo, gosto de os abraçar. E agora não consigo fazê-lo conscientemente. Embora, por vezes, lhes diga: “Põe lá a máscara, para te dar um beijinho.”

Dou um exemplo do que me tem perturbado. O meu neto Guilherme, o do meio, que tem 14 anos, gosta muito de vir para cá com um primo. Mas, de momento, não quero que venham juntos para casa porque tenho receio da contaminação e acabo por proibi-lo. Por defesa. E isso custa-me imenso porque estamos todos a perder muito. Porque os afetos com os netos crescem com o tempo que lhes dedicamos. E sem tanto contacto perde-se. 

A pandemia tornou-me mais caseira. E eu deveria caminhar muito mais à volta do meu bairro, mas sou muito preguiçosa. Porque encontro sempre outra coisa melhor para fazer aqui em casa, onde me sinto mais protegida. Se quiser, trazem-me a casa a comida e a mercearia e não tenho de me deslocar.

Continuo a achar a vida inexplicavelmente preciosa e, apesar de estar mais caseira, quero fazer mais viagens. Fui há dois meses à Islândia, o país mais maravilhoso que conheci. Viajei sozinha num grupo organizado por uma agência. Só precisei de fazer um teste PCR e não precisei usar máscara. Ganhei anos de vida. Foi um pouco voltar a 2019. Agora tenho em vista ir em Setembro ao Alasca, nos EUA. Mas a grande viagem seria fazer a rota de Magalhães, uma espécie de volta ao mundo em dois meses, mas essa não sei se ainda consigo fazer… 

Quando se é mais velho a viagem da vida é mais saborosa. Tem-se mais vivência, não se vive tanto na projecção de um dia poder fazer. Vive-se mais o momento.

Não me vejo como uma idosa. Nem mental, nem fisicamente. Mas há pessoas do grupo etário do qual faço parte que não têm a mesma sorte do que eu e que sofrem. É completamente diferente uma pessoa com 77 anos depositada num lar e eu que me posso mexer para todo o sítio e decidir fazer uma viagem.

Não quero ser utópica e desejar coisas que não consiga alcançar. Venham os crepes de chocolate com os netos, as rosas no meu jardim que agora estão a dormir, os jantares com amigos, as viagens, os livros. Ah! Isso deixa-me feliz. É importante não desistirmos e não nos abandonarmos. Quem desiste de viver vai abaixo mesmo. Eu, por exemplo, visto-me todos os dias para mim e vou todas as semanas ao cabeleireiro. Olho para o espelho e digo “bom, estás mais velhota do que estavas. E como tu eras tão engraçadinha.” Mas tenho sorte. Estou bem. E ainda gostava de conhecer os meus bisnetos. 

Galopim de Carvalho

90 anos, Geólogo e professor jubilado

“Acordo às 4 horas da manhã para escrever”

Esta pandemia mostrou o drama dos velhos (afetados ou não pelo vírus) afastados dos entes que amaram e continuam a amar, com ou sem reciprocidade, arrumados num sítio quase sempre nunca agradável, à espera de partirem. Felizes dos que disseram adeus à vida. Acabou-se-lhes a dor do abandono, da solidão, não raras vezes, dos maus-tratos. Mais do que a morte, dói-me e assusta-me a ideia passar por um desses estabelecimentos de recolha de velhos. Tenho visto na televisão, por causa da pandemia, os lares onde os velhos têm morrido. Ver aqueles conjuntos de velhos sentados numa cadeirinha com uma manta nos pés a ver passar as horas à espera de morrer, é uma coisa horrorosa. Devia haver soluções do setor público para que as velhices fossem mais apoiadas. A maioria dos lares não são as tão desejadas casas de repouso. São um drama.

Uma reflexão que esta pandemia trouxe é o egoísmo dos países desenvolvidos face aos não desenvolvidos. Há vacinas para população do norte da Europa, para os países ricos. E não para os pobres. É uma estupidez. O mundo ainda está muito longe da solidariedade. Mesmo em Portugal. E a pandemia veio agravar as diferenças. Os pobres sofrem mais do que os ricos e os mais velhos mais do que os mais novos.

Aliás, a sociedade põe de parte os mais velhos. Afasta-os. Não lhes liga. Tenho um colega nos Açores que está num lar isolado. Telefono-lhe e ele conta-me que não pode sair nem receber ninguém. É uma morte em vida. 

Felizmente eu e a minha mulher não vivemos essa realidade. Com a idade que tenho, e toda uma série de limitações, doença coronária, neuropatia na perna direita, acentuada surdez e diplopia, a minha condição de aposentado e “arrumado na prateleira”  - contra vontade, por imposição do limite de idade - e, ainda, o gosto quase compulsivo de escrever, tornei-me um cidadão mais amigo da casa do que da rua. Foi assim que, desde a jubilação, para além dos milhares de “escritos”, em blogues e no Facebook, publiquei uma vintena de livros na Âncora Editora. Neste quadro sou um privilegiado e quase não senti restrições e o mal-estar dos confinamentos. Na realidade, não senti contrariedades, inquietações ou medos. O facto de agora cozinhar praticamente todos os dias e ter grande prazer como curioso na arte da cozinha, ajudou-me a esquecer a pandemia que a tantos tem afligido. 

Esta pandemia está muito longe de ser uma das piores experiências da minha vida. Por duas vezes tive a perceção da morte que se me apresentou inevitável. A primeira, teria eu uns onze anos, adoeci com difteria pouco tempo depois de um vizinho meu, rapaz da minha idade, ter falecido por falta do então soro antidiftérico. Quando o médico (que me foi ver a casa) disse à minha mãe de que enfermidade se tratava, tive a certeza que ia ter o mesmo fim do meu vizinho, tanto mais crua, dado que o soro continuava a faltar. Curiosamente senti uma enorme resignação. O soro chegou finalmente, para minha satisfação e da família.

A segunda foi na praia de Carcavelos, tinha eu quinze anos, Não sabia nadar, mas sabia boiar. Estava na água com o meu irmão mais velho, quando senti que perdera o pé e que a corrente me estava a afastar. Ele, que sabia nadar e mal, tentava puxar-me, mas não conseguia e estávamos cada vez mais afastados de terra, levados por forte corrente. A aflição dele era bem maior do que a minha, que voltei a encarar a morte como inevitável. Foi então que o convenci a ir para terra e pedir socorro, garantindo-lhe que me aguentaria a boiar. Lembro-me bem da dor estampada no seu rosto, quando me largou para ir em busca desse socorro. A boiar, cada vez mais longe de terra, foram muitos os minutos à espera de um socorro que não sabia se chegaria. Minutos que deram para imaginar a dor da minha mãe e do meu pai. Uma vez mais, vi o rosto da morte, certamente com um misto de pena e medo, mas dominado por uma enorme resignação.

“Este continua a ser o meu tempo. Porque continuo bem vivo, e talvez mais ativo do que fui no passado”

A trabalhar mais horas, mais intensamente e emocionadamente. Agora controlo o tempo que é todo meu. Acordo às 4 horas da manhã para escrever. É que na minha idade está-se mais fresco quando se acorda. Gosto muito da madrugada. E da minha janela vejo o nascer do dia. Trabalho até às 10h30. Depois trato do almoço. Gosto da cozinha e de fazer coentradas, como o arroz de bacalhau de coentrada ou creme de coentrada. Por vezes digo à minha mulher que a cozinha é a continuação do meu laboratório. Porque fiz sedimentologia com muita prática de laboratório, onde usava copos, garrafas, frascos. E o espírito é o mesmo na cozinha, com tachos e panelas.

Tenho mais um livro no prelo. Chama-se ”Geotoponímia”. É um apanhado de lugares, aldeias, vilas, cidades e outros topónimos relacionados com os léxicos geológico e geográfico. Tenho ainda muitos textos que penso reunir em livro. Ter 90 anos é já ter vivido muito. É ter um passado muito grande e um futuro muito pequenino. Mas não vivo preocupado com a morte. Estou feliz. Como se tivesse 20 anos. Só quando me ponho de pé é que sinto fisicamente a idade que tenho. Gostaria ainda de poder voar num F-16 da Força Aérea. Ir à Austrália e à Antártida. Vamos ver até onde poderei ir…

Mónica Krupenski

85 anos, Secretária de direção 

“Estão a tirar-me tempo útil de vida!”

Fiquei muito perplexa com esta pandemia. Nunca pensei que isto pudesse acontecer. Parece ser uma coisa da Idade Média, como a cólera e a peste bubónica. Acho um bocado assustador que ninguém sabe o andamento que isto vai levar. É tudo muito flutuante. Estamos em areias movediças. Os próprios técnicos e cientistas têm opiniões muito diferentes uns dos outros. Ninguém sabe nada. As restrições variam, as variantes aumentam. Faz-me impressão esta globalização, do perigo estar em toda a parte. 

Tenho casa em Sintra, sou uma privilegiada, e fui para lá nos últimos dois anos. Aquilo é isolado e todos os dias dava as minhas voltas. Escondia o carro no pinhal e andava por ali a respirar outros ares. No verão passado, parecia que tudo ia melhorar e eu como gosto muito de viajar, fui visitar o sul de Itália, de Roma até Lecce. Achei óptimo. E agora estamos com a nova variante Ómicron e já apareceu outra no Chipre. Não vejo isto a acabar tão cedo.

Não sei se é ser demasiado desconfiada, mas há um certo setor que não vai querer que isto acabe tão depressa. Falo do setor dos laboratórios e dos fabricantes de máscaras e gel que enriqueceram à conta da pandemia. E já nos venderam tantas vacinas. Sigo muito as notícias. Quando há um perigo temos que ver o que se passa. Vejo todos os dias o número de casos. Gosto mais de saber, de ver a coisa de frente. Felizmente depois consigo dormir, durmo que nem uma pedra.

Tento ocupar-me em casa. Estou agora a ler “The Dust That Falls From Dreams”, de Louis de Bernières. Foi uma sugestão de um dos meus filhos. Por enquanto começa com o funeral da rainha Vitória. Leio de tudo. Outro que li recentemente foi do polaco Ryszard Kapuscinski, considerado um dos grandes mestres do jornalismo moderno e que viveu 40 anos em África. Meteu-se nos bairros pobres dos negros, ficou tuberculoso, foi tratado num hospital local e deixou um documento muito bem informado daquela terra, onde acho um bocado irreal que se consiga vacinar toda a gente.

Também ando muito a pé em Lisboa, gosto muito de ver a arquitetura da cidade. Antes fazia natação, mas com o Covid nunca mais pus os pés na piscina. Não me inspira confiança. Mas faço outras ‘piscinas’ nas caminhadas por um pinhal em Sintra. A natureza dá ótimas ideias. Claro que com esta pandemia passei a pensar mais nos anos que me faltam. Sinto-me muito bem fisicamente para a minha idade. Não tenho os achaques que as minhas amigas têm. Lagarto, lagarto, lagarto! Em geral estão todas em muito mau estado, com maleitas. Mas fatalmente vai chegar a mim...

Não entrei em depressão, mas sinto que nesta pandemia estão a tirar-me tempo útil. Até para estar com as netas. Durante uns três ou quatro meses nem as vi presencialmente. É uma perda importante. Porque nestas idades depressa pensam noutras coisas e esquecem-se dos avós.

Também as viagens estão a fazer-me muita, muita falta. São uma fixação. O meu pai era diplomata romeno e eu, em criança, viajava muito com dele. E nos últimos 15 anos, depois de ficar viúva e sem os meus filhos em casa, felizmente tinha saúde e algum dinheiro, e decidi explorar o mundo para destinos distantes. Vou sozinha e organizo tudo por mim. Já estive no Uzbequistão, Vietname, Omã, Guatemala, Bolívia, Colômbia, Peru. Ponho um pé num desses destinos e dá-me uma pedalada enorme, fico com uma energia louca, sinto-me livre, independente. Queria ir ainda à Etiópia, mas há lá agora guerra civil, não é boa ideia. Se calhar chegou a hora de fazer viagens por Portugal, há tanto no país para ver.

Acho incrível o que se passa nos lares. Tenho uma cunhada que está num lar, na Casa do Artista. Ela não tem filhos, já não tem marido, recebeu algumas visitas dos sobrinhos, mas agora está completamente isolada de contactos. As pessoas numa idade avançada vivem para as visitas da família. Se eu estivesse num lar queria que me deixassem receber quem eu quisesse. Mais vale deixar. Para quê naquela idade estar-se com tantos cuidados? Não vale a pena. Privar os mais velhos dos afetos e familiares é prolongar uma vida sem qualidade. Olhe, tive uma amiga que esteve oito anos com demência e davam-lhe vitaminas. Dá vontade de rir. Para quê?

António Serzedelo

77 anos, Antigo radialista, jornalista e ativista LGBTI

“O idadismo aumentou com a pandemia”

Agrande dificuldade tem sido enfrentar a solidão. Nos últimos dois anos fui vogal na Freguesia de Arroios. Quando acabou essa atividade a solidão caiu nesta casa que é grande. E resolvi convidar amigos a ficarem cá, para não me sentir tão sozinho. Aliás, tenho acolhido sempre em minha casa refugiados, imigrantes e jovens LGBTI, em urgências sociais. Para eles tenho sempre a porta aberta e ajudam-me a colmatar a solidão. Porque tenho que sair de mim para me preocupar. É o caso da Catarina, uma rapariga transsexual, de 21 anos, que está cá a morar comigo há uns meses a pedido dos seus avós, de quem sou amigo. Pediram-me para a receber, acharam que saberia melhor lidar com esta situação de transição de género. Estou a ser solidário, atento ao que precisa e é um interessante intercâmbio de gerações. É preciso praticar a solidariedade. Procuro apoiar e ajudar alguns refugiados que se salvam de situações terríveis. Alguns recebo-os em minha casa.

Há dias um telefonou-me um antigo ator de cinema homossexual, de 40 anos, que estava em Istambul, capital da Turquia, fugido de um país do Oriente onde a sua sexualidade levava à pena de morte. Não o conhecia de lado nenhum. Viu o meu nome na internet ligado à associação a que eu pertencia - A Opus Gay. Perguntou-me se eu podia ajudar. Falei com a Amnistia Portugal e a Ilga, mas infelizmente não tiveram a possibilidade de o ajudar. Disse-lhe então para tentar a Cruz Vermelha Internacional. Passado uma semana recebi uma chamada dele a dizer-me que estava em Berna, na Suíça, que a Cruz Vermelha o tinha levado. Fiquei felicíssimo. E ele ficou profundamente agradecido. Não fiz nada de especial, apenas juntei contactos.

Há ainda outro rapaz que quero ajudar de um país onde a sua orientação sexual é crime e pode levar à forca.

Esta situação pandémica deu-me mais medo da solidão e da doença. Preocupa-me a subjugação de ficar dependente de alguém. Sempre fui livre. Ao longo da vida viajei por 30 ou 40 países, do Oriente ao Ocidente. 

O idadismo aumentou com a pandemia. Tem de entrar na lei que o idadismo é uma forma de discriminação, igual à discriminação das mulheres, dos homossexuais ou das pessoas de outras etnias. Não se pode discriminar ninguém por razões de idade. Se sou despedido porque sou velho, embora esteja a prestar um bom serviço, só para meter um novo que vai ganhar menos, serei vítima de idadismo. Devia haver mais sensibilidade das pessoas e dos partidos para isto.

E era tempo de passarem a haver lares de 3ª idade para idosos LGBTI, um em cada distrito, onde também pudessem entrar pessoas hetero se quisessem. O que acontece agora é que os velhos homossexuais quando vão para os lares têm de entrar novamente para o armário. E é importante que estejam num espaço seguro, de liberdade de identidade sexual e de género.

Tenho dois gatos e uma cadela. A cadela Lua dorme por cima da minha cabeça, um dos gatos dorme em cima da barriga e o outro nos pés.

Com o passar dos anos perdemos encanto e contactos sociais. O estigma e o preconceito sente-se mais quando se é velho e homossexual. Mesmo nas redes sociais para gays sente-se o estigma da idade, o idadismo. E a tentativa de explorar isso. Já tive muitas ofertas de pessoas que queriam vir para cá tomar conta de mim - coisa que não preciso- e disseram-me para lhes deixar qualquer coisa no testamento. Claro que me revoltou. Percebo que desses lados não há solidariedade, mas sim interesse.

Esta desarrumação e montanha de papelada na escrivaninha da sala tem a ver com a minha impaciência para arrumar as coisas agora que estou em solidão. Supostamente devia ter mais tempo para arrumar, mas não tenho paciência. A solidão cria inquietação para os detalhes, para colocar cada papel no seu lugar da 'gavetinha'. E vou atirando com as coisas para ali, cartas, papéis, conta para não me esquecer que estão pagas, recortes de jornais.

Com este vírus perturbante, a memória começou a resvalar, a falhar. É a perda da noção do tempo. Esqueço-me do nome das pessoas que conheço bem. O que me chateia.

Gostava que me saísse uma lotaria para criar uma associação em que pudesse ser solidário com os que mais sofrem, as vítimas de racismo, de idadismo ou de discriminação LGBTI. Chamar-se-á “Todos Juntos”. Porque só juntos podemos em democracia triunfar. 

Lourdes Norberto

86 anos, Atriz

“Tenho estado mais escondida com esta inquietação”

Quem me dera recuar no tempo. Até aos 35 anos. Foi uma altura em que comecei a ser o mais feliz que era possível. Por uma paixão enorme. Foi o grande amor. Marcou-me. Gostava de aí regressar. O palco é outro amor, os meus filhos também são outro amor. 

Esta pandemia é uma inquietação! Há um ano e meio que estou resguardada na Casa do Artista, em Lisboa, um lugar com residentes que pertenceram ao mundo do espetáculo. É um privilégio, claro. Aqui estão atores, cantores de ópera, guitarristas, saxofonistas. Tenho estado agora aqui mais escondida, estou sempre com a sensação que pode acontecer qualquer coisa que não esteja certa com os outros, com os meus filhos, os meus netos. A minha filha está a viver na Austrália e inquieta-me ela não poder cá vir. Estou tão longe, apesar de falarmos por telefone todos os dias.

Uma atriz nunca deixa de ser atriz. Mesmo quando se reforma. Às vezes estou a ver colegas na televisão e ponho-me a comentar se estão a fazer bem ou mal. A analisar. Esta é melhor. Agora há gente nova com muito jeito. E canastrões há-de haver sempre. E as pessoas com quem aqui lido dizem-me “tu estás sempre a representar!” Porque tiro partido das coisas que estão à minha volta. Se me apetece cantar na varanda canto.

Tenho a mania da dicção e projeção da voz e com as máscaras perdemos um bocado o rosto e a voz dos outros. A maior parte das pessoas não sabia falar e agora… é pior. Fico possessa. Mas resguardam-se! E vivam com paciência esta fase horrível que estamos a viver.

A mim chateia-me essa coisa da idade, pá. Mas é importante sabermos sair de cena, dos palcos, enquanto estamos bem, para acabar em beleza. Tenho esta firmeza. Apesar da saudade, caramba.

“Mas não me sinto a mais velha. Há sempre mais velhos, percebe?”

Aqui há uma senhora, a Teresa, com 102 anos, que era bailarina. E come que se farta e tem boa cabeça…A ideia é o que a gente sente. Há pouco um colega esteve aqui a cantar ao meu lado, achei muita graça. Já não é novo, mas canta lindamente. É uma das vantagens de estar aqui. Agora entrou aqui uma amiga de 94 anos, que trabalhou comigo no teatro, que não pode estar sozinha na quinta onde estava. Falo imenso com ela, parece que tem uma cabeça de 20. E eu só sinto a idade que tenho pelas dificuldades que sinto fisicamente. Lido um bocado mal com a velhice, percebe? Apetece-me imenso não ter esta idade e poder continuar a fazer tudo e mais alguma coisa. E voltar aos palcos o mais possível. É uma das grandes saudades que tenho, no palco sinto-me outra pessoa. É uma vida cheia de personagens. Mas não sofro de solidão. Aqui tenho sempre alguém para falar. 

Alípio Tomé Pinto

86 anos, General

“Faltam-me os abraços”

Uma das coisas que senti foi a perda ritmo de vida. Tinha uma vida muito ativa, com muitas reuniões, conferências, muitos abraços, cumprimentava. Sempre à procura do companheirismo e, de repente, ficámos fechados. E começou uma coisa que nós militares conhecemos bem, que é o medo. Mas este é um medo diferente. Este novo inimigo não sabemos como apareceu, como veio. É um inimigo que desconhecemos e não sabemos quando acaba. 

Faltam-me os abraços. Eu sou avô e um abraço de  um neto é único, especial. Só quem sente. E a pandemia obrigou-nos a afastar e é o que mais me faz sofrer. Fazem-me também falta os abraços dos amigos. Antes quando avistava um amigo que não via há muito a primeira coisa que fazia era abrir os braços, agora já não. Agora é um toque de punho fechado. É o telefone e o computador o que nos vale e onde recebo muitas mensagens. Algumas de ex-soldados meus que me saúdam: “Então meu capitão, como é que vai?” 

Antes das vacinas retirei-me para uma zona entre Mafra e a Ericeira, numa povoação que se chama Achada, tenho lá uma vivenda com jardim e os vizinhos são excepcionais. Aí não uso a máscara. Tenho a sorte de ter dois vizinhos muito próximo da minha casa que me dizem que lhes posso ligar a qualquer hora, a meio da noite se precisar. E há uma outra vizinha da idade das minhas filhas que lhes diz: “Não se preocupem que eu estou sempre a ver quando o vosso pai abre a janela de manhã. Se ele abriu a janela de manhã está tudo bem. Se demora a abrir a janela vamos ver o que se passa.”

Noutros tempos isso não tinha valor e significado. E até dizíamos. “Olha lá está aquela a meter-se”. Agora tem importância sabermos que há alguém preocupado com o nosso bem, face à idade, e se abrimos a janela de manhã. Substituem as minhas filhas quando elas não estão. 

Sabe, as pessoas querem ser mais solidárias, mas a pandemia afasta as pessoas. É uma contradição. Lá vem o medo. O outro, as pessoas, podem ser uma ameaça. E a máscara tira as expressões dos outros, torna tudo menos humano. Claro que para nós com esta idade avançada, torna-se mais difícil. Sentimos mais o isolamento e a solidão.

Quando estou em Lisboa, vivo sozinho numa casa muito grande. Tive o inconveniente de que a minha mulher faleceu um ano antes da Covid. Sinto-me muito isolado. Apesar de ter as duas filhas e dois netos sempre a acompanhar-me. Tenho o cuidado de colocar as chaves de uma determinada maneira para as minhas filhas poderem entrar quando quiserem. E elas vêm. Sabe, um indivíduo sozinho não é ninguém. Temos de viver para os outros e com os outros. Sou da linha da solidariedade, da amizade e não do egoísmo. A amizade, o amor e a confiança das pessoas ajuda muito a viver. É a chamada felicidade.

Quero viver mais uns anos. Gosto de viver. A ver se me esquivo a este vírus, porque posso não resistir se o apanhar... 

Créditos

Texto Bernardo Mendonça
Fotos Ana Baião

Edição multimédia Ruben Tiago Pereira
Webdesign Tiago Santos
Coordenação Joana Beleza e Pedro Candeias
Direção João Vieira Pereira

Expresso 2022