As outras guerras a que não estamos a prestar atenção

"O mundo é um jogo de xadrez extremamente complexo" e os seres humanos parecem ter um apetite voraz para se matarem uns aos outros. Apesar de não abrirem o noticiário, há dezenas de conflitos que estão neste momento a assolar o mundo — alguns são recentes, outros já duram há décadas. No século XXI, o terror acontece sobretudo em África, no Médio Oriente e na Ásia Meridional — entre guerras civis, disputas territoriais, genocídios ou terrorismo interno. São muitas batalhas e demasiadas vítimas: as razões são várias, as justificações nenhumas.

Conflitos ativos em 2022

Iémen: uma das maiores crises humanitárias do mundo

A 16 de fevereiro deste ano, rebeldes houthis tentaram assumir o controlo de Marib, a última grande cidade do Iémen ainda gerida pelo governo: os ataques destruíram alvos militares mas também uma escola, ferindo e matando vários civis. O grupo de insurgentes originário do norte do país é composto sobretudo por zaiditas — uma corrente xiita à qual pertence 35% da população do Iémen — e tomou a capital do país (Sana’a) em 2014, exigindo um novo governo e uma descida dos preços dos combustíveis. O presidente demitiu-se, o conflito começou, o presidente voltou ao poder — e a guerra civil nunca mais parou. 

Irão e Arábia Saudita escolheram lados: o primeiro apoia os rebeldes; o segundo ataca-os militarmente, através de sanções económicas, e com ajuda dos Estados Unidos. Em fevereiro, cinco funcionários da ONU foram raptados por forças houthis, e em março uma operação saudita e norte-americana resgatou duas mulheres americanas que estavam em cativeiro. Cerca de 377 mil pessoas terão morrido devido à guerra até ao final do ano passado, há mais de 20 milhões a precisar de ajuda humanitária, e a ONU avisa: o número de mortes poderá chegar aos 1,3 milhões em 2030.

Nas últimas semanas, os houthis voltaram a bombardear pontos estratégicos sauditas e nos Emirados Árabes Unidos: “ataques terroristas hediondos", classificou o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Só em 2022, três em cada dez cidadãos do Iémen vão precisar de ajuda alimentar: mais de 19 milhões de pessoas estão neste momento ameaçadas pela fome, e são precisos mais de 3,8 mil milhões de euros para combater o problema. A Comissão Europeia já prometeu 154 milhões para ajudar o país ao longo do ano. 

Batalhas entre forças governamentais do Iémen e tribos em Sana’a têm provocado dezenas de mortos

Batalhas entre forças governamentais do Iémen e tribos em Sana’a têm provocado dezenas de mortos

Um rapaz leal ao movimento xiita durante uma reunião tribal

Um rapaz leal ao movimento xiita durante uma reunião tribal

Iemenitas na capital Sana’a, tomada pelos rebeldes houthis em 2014

Iemenitas na capital Sana’a, tomada pelos rebeldes houthis em 2014

Uma criança brinca numa zona residencial em Sadah

Uma criança brinca numa zona residencial em Sadah

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Batalhas entre forças governamentais do Iémen e tribos em Sana’a têm provocado dezenas de mortos

Batalhas entre forças governamentais do Iémen e tribos em Sana’a têm provocado dezenas de mortos

Um rapaz leal ao movimento xiita durante uma reunião tribal

Um rapaz leal ao movimento xiita durante uma reunião tribal

Iemenitas na capital Sana’a, tomada pelos rebeldes houthis em 2014

Iemenitas na capital Sana’a, tomada pelos rebeldes houthis em 2014

Uma criança brinca numa zona residencial em Sadah

Uma criança brinca numa zona residencial em Sadah

República Centro Africana: em guerra civil há quase 13 anos

No dia em que a invasão da Ucrânia começou, a 24 de fevereiro, a República Centro Africana (RCA) libertou quatro soldados europeus da missão de paz da ONU no país: estavam acusados de planear o “assassinato” do presidente Faustin-Archange Touadéra, no poder desde 2016. Poucas horas antes, a França e os EUA tinham condenado a presença de “mercenários” russos contratados pelo governo para matarem cerca de 30 civis em janeiro. 

A França explorou os recursos naturais do território até à independência, em 1960, e a RCA vive em instabilidade política desde então: as últimas décadas têm sido marcadas por disputas sangrentas entre grupos cristãos e muçulmanos. A atual guerra civil começou em 2013, quando uma milícia predominantemente muçulmana levou a cabo um golpe militar para depor o então presidente François Bozizé, interessado em voltar a controlar as minas do país. Já morreram milhares de pessoas, há mais de 500 mil refugiados e 581 mil deslocados internos, e cerca de 2,9 milhões de pessoas precisam de ajuda humanitária. 

A paz já foi tentada e assinada várias vezes entretanto: o governo acordou um cessar-fogo com 14 grupos rebeldes em fevereiro de 2019, mas a violência regressou quando o Tribunal Constitucional impediu Bozizé de se candidatar às eleições presidenciais. As instituições não funcionam há muito tempo: “Muito poucos criminosos de guerra foram presos ou julgados pelos vários crimes de guerra e contra a Humanidade que foram cometidos no país nas últimas décadas”, alerta a Amnistia Internacional. 

Comandos da segunda força destacada na República Centro-Africana ao serviço da Minusca na estrada entre Bangassou e Bangui. A viagem entre as duas cidades demora quatro dias para realizar cerca de 700 quilómetros. © Tiago Miranda

© Tiago Miranda

© Tiago Miranda

Comandos da segunda força destacada na República Centro-Africana ao serviço da Minusca na estrada entre Bangassou e Bangui. A viagem entre as duas cidades demora quatro dias para realizar cerca de 700 quilómetros. © Tiago Miranda

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Nigéria: a ganhar terreno ao extremismo devagar

O Estado Islâmico da Província da África Ocidental (ISWAP) matou vários soldados nigerianos um dia antes das primeiras bombas russas começarem a cair em solo ucraniano. Foi o mais recente atentado suicida registado na Nigéria, onde o grupo fundamentalista Boko Haram e mais recentemente o ISWAP têm feito milhares de vítimas desde 2009: as últimas estimativas apontam para 350 mil mortes.

Em abril de 2019, o grupo extremista Boko Haram matou pelo menos 60 nigerianos. Esta cerimónia decorreu na aldeia de Sajeri. © Agence France-Presse

Em abril de 2019, o grupo extremista Boko Haram matou pelo menos 60 nigerianos. Esta cerimónia decorreu na aldeia de Sajeri. © Agence France-Presse

O Boko Haram teve um pico de violência entre 2014 e 2015, dirigida sobretudo a mulheres e crianças. Em abril de 2014, o Boko Haram raptou mais de 200 meninas que estavam na escola, um caso que fez aumentar a atenção internacional para o conflito. Mais de 100 crianças já foram libertadas entretanto. 

Os extremistas ainda controlam uma boa parte do território, mas as forças armadas nigerianas têm conseguido repelir os terroristas com a ajuda de países como o Chade e os Camarões. E as instituições estão a (tentar) funcionar: há poucos dias, 559 ex-militantes do Boko Haram completaram um programa de desradicalização e vão ser reintegrados na sociedade em breve. Mais de 1600 ex-membros já completaram este programa. 

Um acampamento do exército na Nigéria depois de ser atacado pela milícia Boko Haram © Agence France-Presse

Um acampamento do exército na Nigéria depois de ser atacado pela milícia Boko Haram © Agence France-Presse

Líbia: uma nação entre estados paralelos

A Líbia ainda não encontrou a paz desde que o regime liderado por Muammar Kadafi caiu em 2011: a 4 de março, grupos armados não identificados tomaram e destruíram o segundo campo petrolífero no país. Novas batalhas seriam uma violação do cessar-fogo acordado entre as duas partes que querem o controlo institucional do país: de um lado o exército e o parlamento, do outro o Governo de Acordo Nacional, criado em 2015 com o apoio da ONU — que agora pede “calma”, “estabilidade” e respeito pela democracia. 

Ao longo dos anos, ambos os lados foram criando estruturas administrativas separadas: o estado líbio ainda não existe como um todo, e essa instabilidade política tem ajudado ao crescimento de extremistas islâmicos no país — incluindo o grupo Ansar al-Sharia, que terá atacado o consulado dos EUA em 2012.

Eleições legislativas estavam marcadas para dezembro, mas foram adiadas: o atual primeiro-ministro, Abdul Hamid Dbeibeh, diz que só cede o lugar depois do ato eleitoral, marcado para junho. No entanto, o parlamento não quis esperar: a 2 de março, deram luz verde a um novo governo de transição; um dia depois, homens armados raptaram dois dos políticos que tinham aceitado ser ministros. No total, a guerra civil já causou pelo menos mil mortes. Cerca de 217 mil pessoas foram obrigadas a fugir das suas casas, e há 1,3 milhões a precisar de assistência humanitária. 

Momento em que a base aérea de al-Watiya foi conquistada pelo Governo de Acordo Nacional, em 2020

Momento em que a base aérea de al-Watiya foi conquistada pelo Governo de Acordo Nacional, em 2020

Tanque líbio capturado e abandonado no deserto do Sahara

Tanque líbio capturado e abandonado no deserto do Sahara

Militares líbios numa demonstração na cidade de Misrata, em março de 2022

Militares líbios numa demonstração na cidade de Misrata, em março de 2022

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Momento em que a base aérea de al-Watiya foi conquistada pelo Governo de Acordo Nacional, em 2020

Momento em que a base aérea de al-Watiya foi conquistada pelo Governo de Acordo Nacional, em 2020

Tanque líbio capturado e abandonado no deserto do Sahara

Tanque líbio capturado e abandonado no deserto do Sahara

Militares líbios numa demonstração na cidade de Misrata, em março de 2022

Militares líbios numa demonstração na cidade de Misrata, em março de 2022

Myanmar: a perseguição contra os Rohingya, um povo sem voz

Foi o sexto incêndio em 2022: este mês, um campo para refugiados no Bangladesh foi consumido pelas chamas, matando uma criança e deixando mais de duas mil pessoas sem local para viver. É o mais recente capítulo de uma história de perseguição que começou há várias décadas e evoluiu para um genocídio em 2017, levado a cabo pelas autoridades de Myanmar sobre a minoria étnica muçulmana Rohingya — que não são reconhecidos como cidadãos e por isso estão impedidos de votar. 

Em fevereiro do ano passado, um golpe militar depôs o governo e prendeu os principais líderes nacionais. Os cidadãos saíram à rua em protesto, as autoridades responderam com força: pelo menos 600 pessoas foram mortas desde o golpe de Estado, que restringiu ainda mais o acesso dos Rohingya a necessidades básicas — em parte, porque os militares agora no poder também são responsáveis por massacrar a minoria muçulmana nos últimos anos. 

Há 1,3 milhões de Rohingya em Myanmar: mais de 700 mil já fugiram para o Bangladesh desde 2017 e outros 129 mil foram forçados a deixar as suas casas no país para não perderem a vida. O número de desaparecidos é elevado, o número de violações e torturas também, e não se sabe ao certo quantos milhares de pessoas já foram mortas.

Um incêndio arrasou um campo de refugiados Rohingya em Ukhia, a 10 de janeiro de 2022. © Tanbir Miraj / Agence France-Presse - Getty Images

© Reuters / Stringer

 © Stringer/Anadolu Agency via Getty Images

Um incêndio arrasou um campo de refugiados Rohingya em Ukhia, a 10 de janeiro de 2022. © Tanbir Miraj / Agence France-Presse - Getty Images

© Reuters / Stringer

 © Stringer/Anadolu Agency via Getty Images

Israel: o "apartheid" ao povo palestiniano

Um manifestante palestiniano usa uma fisga para atirar pedras às forças de segurança israelitas, após as orações na cidade ocupada de Hebron, na Cisjordânia, a 18 de fevereiro de 2022. © Hazem Bader / Agence France-Presse - Getty Images

Um manifestante palestiniano usa uma fisga para atirar pedras às forças de segurança israelitas, após as orações na cidade ocupada de Hebron, na Cisjordânia, a 18 de fevereiro de 2022. © Hazem Bader / Agence France-Presse - Getty Images

Nader Rayan era um adolescente palestiniano de 17 anos: a 15 de março, foi morto com um tiro na cabeça e outro no peito por militares israelitas num campo de refugiados na cidade de Nablus, na Cisjordânia. Outros dois palestinianos perderam a vida no mesmo dia, mas nenhuma das mortes foi notícia. Não por causa da guerra na Ucrânia, mas porque o mundo já aprendeu a conviver com o atual conflito territorial entre Israel e Palestina, iniciado em 1947.

Em 2022, o risco de uma terceira intifada é real. No ano passado, várias famílias palestinianas foram despejadas das suas casas em Jerusalém a favor de israelitas, motivando protestos populares que rapidamente evoluíram para violência entre as polícias e militares de Israel e o Hamas, que controla a Faixa de Gaza. Com a ajuda do Egito, um cessar-fogo foi alcançado em maio: foram (mais) 11 dias de violência, 250 palestinianos e 13 israelitas mortos, e um milhão de dólares de prejuízo em Gaza — um território onde 43% da população está desempregada. 

Há mais de 475 mil israelitas a viver na Cisjordânia. A ocupação de território palestiniano é ilegal aos olhos da comunidade internacional: há umas semanas, a Amnistia Internacional acusou Israel de “apartheid” e pediu ao Tribunal Penal Internacional para investigar o crime. É difícil fixar o número de vítimas ao longo dos anos, mas estima-se que mais de 14 mil pessoas perderam a vida desde 1987. A esmagadora maioria são cidadãos palestinianos. 

Síria: um país encurralado entre várias guerras

O conflito que assola a Síria desde 2011 não é apenas uma guerra civil, são várias. Uma delas é travada pelo regime e por vários países ocidentais contra o Estado Islâmico: em fevereiro, o líder do grupo terrorista (Abu Ibrahim al-Hashimi al-Qurayshi) morreu numa operação especial levada a cabo pelos Estados Unidos, mas o seu sucessor já foi anunciado este mês. Por outro lado, a principal preocupação do regime do Presidente Bashar al-Assad tem sido combater a rebelião interna, incluindo as Forças Democráticas Sírias (SDF), uma aliança de milícias apoiada militarmente pelos EUA, próxima de separatistas curdos a combater na Síria, e cujo objetivo é instalar um governo secular no país.

Por esta altura, as SDF já terão conquistado quase todo o território que o Estado Islâmico chegou a controlar na Síria nos últimos anos. Durante esse período, Assad pediu ajuda militar à Rússia para se manter no poder, e as vitórias no terreno estão a ter efeitos diplomáticos. Este mês, Assad viajou até aos Emirados Árabes Unidos — a primeira visita oficial a um país árabe desde o início da guerra — e foi recebido com grande “fraternidade”. 

Os EUA pediram aos vizinhos da Síria para se lembrarem das “atrocidades” cometidas pelo regime na última década: com a ajuda de Putin, Assad cometeu crimes de guerra contra o seu próprio povo — incluindo o uso de armas químicas. A ONU diz que já morreram pelo menos 400 mil pessoas. Há ainda cerca de 5,6 milhões de refugiados e 6,2 milhões de deslocados internos. 

Edifício totalmente destruído, após um ataque israelita em Damasco a 7 de março de 2022

Edifício totalmente destruído, após um ataque israelita em Damasco a 7 de março de 2022

Combatentes sírios rebeldes em Tadef, a 4 de março de 2022

Combatentes sírios rebeldes em Tadef, a 4 de março de 2022

Edifícios danificados numa rua na cidade de Tadef

Edifícios danificados numa rua na cidade de Tadef

Depósito de combustível em Dana após um bombardeamento, a 16 de fevereiro de 2022

Depósito de combustível em Dana após um bombardeamento, a 16 de fevereiro de 2022

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Edifício totalmente destruído, após um ataque israelita em Damasco a 7 de março de 2022

Edifício totalmente destruído, após um ataque israelita em Damasco a 7 de março de 2022

Combatentes sírios rebeldes em Tadef, a 4 de março de 2022

Combatentes sírios rebeldes em Tadef, a 4 de março de 2022

Edifícios danificados numa rua na cidade de Tadef

Edifícios danificados numa rua na cidade de Tadef

Depósito de combustível em Dana após um bombardeamento, a 16 de fevereiro de 2022

Depósito de combustível em Dana após um bombardeamento, a 16 de fevereiro de 2022

Caxemira: uma disputa longa e violenta entre Índia e Paquistão

Caxemira é uma região tripartida: a Índia controla cerca de 43% do território, o Paquistão 37% e a China 20%. Mas Caxemira é sobretudo cobiçada pelos primeiros dois países desde a descolonização britânica. Aliás, as disputas territoriais sobre a região desencadearam duas das três principais guerras indo-paquistanesas em 1947 e 1965, e outra de menor dimensão já em 1999.

O acordo de cessar-fogo conseguido em 2003 é muito frágil e não tem impedido as repetidas ondas de violência entre os dois países. Em fevereiro de 2019, um ataque a um comboio de forças paramilitares indianas matou pelo menos quarenta soldados. A agressão foi reivindicada pelo Jaish-e-Mohammad, um grupo militante islâmico baseado no Paquistão, supostamente banido em 2002. Este ataque na zona controlada pela Índia foi o mais mortal dos últimos 30 anos.

Caxemira continua a ser um amplo palco de violência: cada lado acusa o outro de violar o acordo de paz e, por isso, as retaliações são frequentes. Assim, o risco de um confronto militar sério entre Índia e Paquistão permanece elevado — ambas as potências têm armas nucleares e isso é uma preocupação acrescida.

Estudante passa pelo exército indiano em Caxemira. © Dar Yasin / AP

Estudante passa pelo exército indiano em Caxemira. © Dar Yasin / AP

Agentes da polícia indiana depois de um tiroteio em Srinagar, Caxemira, a 16 de março de 2022. © Farooq Khan / EPA

Agentes da polícia indiana depois de um tiroteio em Srinagar, Caxemira, a 16 de março de 2022. © Farooq Khan / EPA

República Democrática do Congo: em transição para a paz que não chega

No primeiro dia de fevereiro, um tribunal militar da República Democrática do Congo condenou 51 pessoas à morte pelo envolvimento no assassinato, em 2017, de dois oficiais da ONU que estavam a investigar relatos de violência na província de Kasai. No dia seguinte, supostos militares mataram “dezenas” de pessoas num campo de deslocados em Ituri — ato que fez António Guterres reforçar o número de capacetes azuis no país (na altura já eram cerca de 16 mil). 

O Congo é sinónimo de violência há décadas e continua a sofrer as consequências do genocídio do Ruanda, em 1994. As tensões entre a etnias Hutu e Tutsi continuam até hoje, e a política tem sido incapaz de trazer a paz. Os resultados das últimas eleições presidenciais de 2019 foram postos em causa, há surtos de ébola ativos no leste do país, e a 20 de março 14 pessoas foram mortas em Ituri, incluindo sete crianças. Dias antes, tinha sido notícia um ataque terrorista levado a cabo por extremistas islâmicos: 60 pessoas perderam a vida em várias aldeias ao longo de cinco dias.

O povo tem saído à rua nos últimos meses em protesto contra a violência. Mas a margem de manobra é pouca: há mais de 130 grupos armados a atacar civis por todo o país, muitos deles compostos por crianças-soldados — só em 2019, a ONU reportou 601 novos casos de recrutamento infantil por milícias. Ao mesmo tempo, mais de três mil crianças escaparam ou foram resgatadas destes grupos. Há mais de 5,5 milhões de deslocados internos e mais de 800 mil refugiados noutros países. 

Campo de refugiados e deslocados internos na República Democrática do Congo. 16.000 pessoas vivem na região de Rutshuru, no Kivu Norte e Kiwanja. Ainda mais a oeste da região continuam os combates entre as forças governamentais e as forças rebeldes. © Yannick Tylle / Getty Images

© Eddie Gerald / Getty Images

Campo de refugiados e deslocados internos na República Democrática do Congo. 16.000 pessoas vivem na região de Rutshuru, no Kivu Norte e Kiwanja. Ainda mais a oeste da região continuam os combates entre as forças governamentais e as forças rebeldes. © Yannick Tylle / Getty Images

© Eddie Gerald / Getty Images

O "jogo de xadrez complexo" que se avizinha

A invasão russa da Ucrânia tem o potencial de desestabilizar ainda mais regiões frágeis do globo: em 2020, os países africanos compraram à Rússia cerca de quatro mil milhões de dólares em produtos agrícolas, numa lista que inclui o Egipto, Sudão, Nigéria e Tanzânia. Ao mesmo tempo, a Ucrânia exportou cerca de 2,9 mil milhões para o continente africano — 48% deste valor diz respeito a trigo, 31% a milho, e o restante a óleo de girassol, cevada e soja. 

“Os países africanos têm razões para estar preocupados, dada a sua dependência de grãos e cereais importados. A curto prazo, vão provavelmente sentir o impacto através de um aumento dos preços, e não propriamente escassez de bens”, escreveu Wandile Sihlobo, economista-chefe da Câmara de Negócios Agrícolas da África do Sul e conselheiro presidencial, num artigo publicado no “The Conversation”.

O preço do pão foi um dos catalisadores de várias revoluções da Primavera Árabe — Tunísia, Egipto, Iémen — e há o risco de a história se voltar a repetir. Mas isso também pode não acontecer: “Apesar das dificuldades acrescidas, esta crise também é uma oportunidade: a União Europeia importa bastante milho da Rússia e da Ucrânia, e teremos de procurar outros fornecedores. África não tem capacidade instalada [para produzir], mas se a Europa ajudar com tecnologia e infraestruturas pode haver um estímulo de produção que beneficie ambos os lados”, salienta Luís Tomé, especialista em geopolítica e relações internacionais. 

Há boas notícias vindas de África — o Chade entrou agora em negociações de paz no Qatar, por exemplo — mas “o mundo é um jogo de xadrez extremamente complexo”, avisa o investigador. “Estados Unidos, China e Rússia têm remado frequentemente para o mesmo lado [nos últimos anos], sobretudo quando não têm interesses económicos nos locais, mas isso pode mudar com esta guerra”, alerta Luís Tomé. Na ressaca da Ucrânia, há o risco de a Rússia voltar-se outra vez para dois estados falhados no Médio Oriente: Líbia e sobretudo Síria, onde Putin instalou duas bases militares já depois de ter arrasado a capital do país, Damasco. 

Uma Rússia economicamente frágil devido às sanções também vai fazer o Kremlin vender o que pode a preços de saldo — incluindo armas, produto do qual são o segundo maior fornecedor mundial. “Armamento a chegar a governos e movimentos desadequados seria um fator acrescido de instabilidade”, garante Luís Tomé. O isolamento russo pode levar o Kremlin a intensificar também a sua influência no território do Sahel, onde estão alguns dos países mais frágeis do mundo: Mali, Eritreia, Níger e Burkina Faso, por exemplo. 

Além disso, nos últimos anos têm sido celebrados contratos com vários países africanos — Etiópia, Gana, Sudão — para a instalação de centrais nucleares controladas por empresas estatais russas, abrindo a porta à dependência económica destes países perante Moscovo. “As tentativas de golpe de estado já são bastante frequentes em África, imagine-se como será se forem instigadas e alimentadas a partir de fora”, argumenta o docente da Universidade Autónoma. 

Conflitos armados entre 1946 e 2020

Apesar de tudo isto, a Rússia não será a principal preocupação do mundo nos próximos anos. Segundo o Pentágono, a China vai avançar sob Taiwan até 2025: “De certeza que isso vai acontecer, e se necessário pela via da força. O mundo anda distraído, mas todos os dias as autoridades de Taiwan denunciam aviões chineses a violar o seu espaço aéreo”, lembra Luís Tomé. 

A aliança militar AUKUS — oficializada em setembro entre EUA, Reino Unido e Austrália — foi um recado ocidental para Pequim: “É claramente uma manobra anti-China, e feita sem articulação com outros aliados. Estão a dizer que não vão tolerar uma situação similar à da Ucrânia no Pacífico — ou seja, que envolva alteração de fronteiras", resume o especialista. 

Pequim está neste momento envolvido em outras duas disputas territoriais que podem desencadear uma guerra no Pacífico a qualquer momento: no Mar da China Oriental, onde há oito ilhas em disputa com o Japão; e no Mar do Sul da China, uma importante zona comercial onde é feita 10% da pesca mundial. Pequim reclama direitos históricos sobre as águas e tem aumentado a sua presença militar marítima (incluindo através da criação de ilhas artificiais), mas essas pretensões chocam diretamente com os interesses da Coreia do Sul, Japão e EUA.

“Há o risco de violência nos próximos anos”, salienta Luís Tomé. Em 2016, o Tribunal Arbitral sobre o Mar do Sul da China disse que a ocupação das águas por parte de Pequim é ilegal. A sentença é vinculativa, mas a China não a aceitou. Nem precisa: a Nova Rota da Seda já está em marcha, promete revolucionar o comércio global, e tem em África a sua maior componente — o que também ajuda a explicar o forte investimento militar da China neste continente nos últimos anos.

“A China já está a condicionar outras partes do globo pela via económica, canibalizando matérias-primas como o petróleo em troca de infraestruturas. Já o fazia dantes, mas agora tem interesses geopolíticos muito concretos e a sua influência diplomática está a crescer”, analisa Luís Tomé. Um desses interesses é o Irão, uma potência nuclear da qual a China se tornou o maior parceiro económico. “Está a surgir um triângulo estratégico — China, Rússia e Irão — que vai ser importante nos próximos tempos”, diz o investigador.

Estamos a assistir aos primórdios de uma Segunda Guerra Fria? Mesmo que o mundo não chegue a esse ponto, as guerras por procuração — proxy wars — entre as nações mais poderosas vão proliferar: o Afeganistão talibã é terreno fértil para elas, a rivalidade entre Irão e Arábia Saudita continua a alimentar vários dos conflitos aqui assinalados, e a Europa já entrou numa com a Rússia. “É crucial que os decisores políticos europeus percebam que já estão numa guerra por procuração com a Rússia e que considerem bem os riscos associados a isso”, avisou Michel Wyss, investigador de estudos estratégicos na Academia Militar suíça, num artigo publicado na Lawfare. 

Por isso, o Velho Continente não estará imune aos perigos da guerra. A invasão da Ucrânia fez a NATO recuperar da “morte cerebral” anunciada por Emmanuel Macron em 2019, e levou a maioria dos países da União Europeia a anunciar reforços nos seus orçamentos de defesa e armamento — incluindo a Alemanha, que anunciou uma verba extraordinária de 100 mil milhões de euros para equipamento militar.

Isto pode ser algo positivo agora, mas não necessariamente no futuro. “Imaginemos que daqui a 20 anos há um governo nacionalista na Alemanha. Sendo um país com hegemonia económica e militar, terá mais capacidades para coagir e pressionar outros países. É impossível garantir que a Alemanha não será o próximo perturbador da Europa no futuro. A história diz-nos isso ”, diz Luís Tomé, lembrando o passado sangrento deixado pela Alemanha Imperial, pela Prússia e pelo regime nazi. 

As consequências de uma Alemanha bem armada dentro da UE são difíceis de prever, mas o investigador garante: os restantes Estados-membros ficariam “muito condicionados” e iriam começar uma “corrida ao armamento''. A guerra na Ucrânia ainda não tem um mês — “mas vai mudar o mundo e a Europa nos próximos anos”.

Mortes em conflitos armados entre 1946 e 2020

Sudão do Sul: um estado jovem a promover violência

A ONU anunciou recentemente que vai prolongar a sua missão de paz no Sudão do Sul, onde gasta cerca de mil milhões de euros por ano para manter quase 20 mil soldados. A razão é esta: há centenas de membros do governo que cometeram violações de direitos humanos “equivalentes a crimes de guerra” no sul do país, incluindo abusos contra crianças. 

O Sudão do Sul é o país mais recente do mundo: obteve a independência em 2011 e entrou em guerra civil dois anos depois, na sequência de uma disputa entre dois líderes políticos pertencentes às duas maiores etnias do país. Vários grupos armados têm espalhado violência e terror desde então: atacam civis pela sua etnia, cometem violações, destroem aldeias inteiras e recrutam crianças para as suas fileiras. 

Em 2022, mais de 70% da população vai estar em “fome extrema” devido aos conflitos e às consequências das alterações climáticas, avisou o Programa Alimentar Mundial. Já perderam a vida cerca de 400 mil pessoas desde dezembro de 2013, e há quase 2,3 milhões de refugiados ou em necessidade de asilo. 

Combatente sudanês armado com um G3, em maio de 2011

Combatente sudanês armado com um G3, em maio de 2011

Refugiados sudaneses no Uganda, em 2014

Refugiados sudaneses no Uganda, em 2014

Soldado das forças governamentais do Sudão, em 2018, junto a um rebanho de vacas

Soldado das forças governamentais do Sudão, em 2018, junto a um rebanho de vacas

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Combatente sudanês armado com um G3, em maio de 2011

Combatente sudanês armado com um G3, em maio de 2011

Refugiados sudaneses no Uganda, em 2014

Refugiados sudaneses no Uganda, em 2014

Soldado das forças governamentais do Sudão, em 2018, junto a um rebanho de vacas

Soldado das forças governamentais do Sudão, em 2018, junto a um rebanho de vacas

Destroços de um bairro na cidade de Arbil, capital da região autónoma do Curdistão iraquiano, após um ataque noturno a 13 de março de 2022. © AFP - Getty Images

Destroços de um bairro na cidade de Arbil, capital da região autónoma do Curdistão iraquiano, após um ataque noturno a 13 de março de 2022. © AFP - Getty Images

Um membro das forças de segurança de Peshmerga saúda a bandeira curda em Arbil, a capital do Curdistão iraquiano, a 16 de dezembro de 2021. © AFP - Getty Images

Um membro das forças de segurança de Peshmerga saúda a bandeira curda em Arbil, a capital do Curdistão iraquiano, a 16 de dezembro de 2021. © AFP - Getty Images

Turquia e Curdistão, um conflito em escalada

A Turquia continua a atacar regularmente bases militares do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) no Iraque e na Síria. Pelo menos quatro curdos perderam a vida no início de fevereiro, poucos dias após terem combatido grupos ligados ao Estado Islâmico. Horas depois, um soldado turco foi morto por um morteiro atribuído ao PKK. 

A insurgência curda já dura há 35 anos: inicialmente pela independência, nos últimos anos por uma região autónoma. Desde o início de 2022, a tensão entre turcos e curdos tem aumentado sobretudo em zonas no norte do Iraque e na fronteira entre a Turquia e a Síria, onde o PKK tem uma filial armada também envolvida na guerra civil. O conflito acontece simultaneamente em vários territórios instáveis e não parece haver uma resolução não violenta à vista. Por um lado porque Síria e Iraque continuam a ser estados-falhados, por outro porque Recep Tayyip Erdoğan, presidente da Turquia, depende muito do apoio de nacionalistas anti-curdos na frente interna.

O último cessar-fogo durou dois anos e foi violado em 2015, quando um bombista suicida ligado ao Daesh matou quase 30 curdos perto da fronteira com a Síria. No ano seguinte, a Turquia aumentou os ataques aéreos no país contra militantes do PKK e as operações militares na Síria contra o Estado Islâmico — e agora está a tentar eliminar o partido pró-curdo internamente. Até agora, o conflito já causou pelo menos 40 mil mortes. 

Somália: a fraqueza de um governo aproveitada por terroristas 

Vários comandantes das forças armadas norte-americanas pediram ajuda há cerca de duas semanas: para continuarem a combater o grupo terrorista Al-Shabaab, Joe Biden vai precisar de enviar mais tropas para a Somália. Vai reverter-se assim uma decisão de Donald Trump que durante a sua presidência tirou mais de 700 militares do país africano.

O Al-Shabaab é próximo da Al-Qaeda, foi criado em 2006 e teve um papel destrutivo durante a guerra entre a Etiópia e a Somália, que durou até 2009. O grupo atingiu o pico da sua atividade terrorista em 2011, quando assumiu o controlo de várias zonas da capital Mogadíscio, bem como do porto de Kismayo. Estima-se que existam entre sete mil e nove mil combatentes: são sobretudo jovens e atacam de igual forma organizações civis, instituições estatais e alvos militares — incluindo da Missão da União Africana para a Somália, aprovada pela ONU e com mais de 20 mil soldados no terreno.

Um dos mais fortes combustíveis do terror é o falhanço político: o Estado somali não foi capaz de organizar eleições presidenciais antes do final do mandato do atual presidente, terminado em fevereiro do ano passado. O vazio de poder mantém-se e os ataques terroristas continuam: desde 2010, o Al-Shabaab já matou mais de quatro mil civis. 

Prédio após explosão que matou 30 pessoas, em 2019

Prédio após explosão que matou 30 pessoas, em 2019

Carro da polícia após um ataque terrorista do grupo Al-Shabaab, em Mogadishu, a 16 de fevereiro de 2022

Carro da polícia após um ataque terrorista do grupo Al-Shabaab, em Mogadishu, a 16 de fevereiro de 2022

Funeral do jornalista Abdiaziz Mohamud Guled, director da Radio Mogadishu, morto por um bombista suicida em novembro de 2021

Funeral do jornalista Abdiaziz Mohamud Guled, director da Radio Mogadishu, morto por um bombista suicida em novembro de 2021

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Prédio após explosão que matou 30 pessoas, em 2019

Prédio após explosão que matou 30 pessoas, em 2019

Carro da polícia após um ataque terrorista do grupo Al-Shabaab, em Mogadishu, a 16 de fevereiro de 2022

Carro da polícia após um ataque terrorista do grupo Al-Shabaab, em Mogadishu, a 16 de fevereiro de 2022

Funeral do jornalista Abdiaziz Mohamud Guled, director da Radio Mogadishu, morto por um bombista suicida em novembro de 2021

Funeral do jornalista Abdiaziz Mohamud Guled, director da Radio Mogadishu, morto por um bombista suicida em novembro de 2021

Paquistão: em combate contra dois grupos extremistas

O Estado Islâmico também está a matar no Paquistão. No início de março, um ataque terrorista numa mesquita assassinou 61 pessoas e deixou centenas de feridos. Foi mais um evento de violência extremista que tem assolado o país nos últimos anos. Além desta filial do Daesh, as autoridades paquistanesas estão a combater forças talibãs (Tehrik-e-Taliban Pakistan, TTP) dentro de portas. Os dois grupos armados aparentam ter uma ligação próxima e continuam a atacar alvos civis.

Vítima de um ataque suicida a uma mesquita xiita em Peshawar, em março de 2022, que matou pelo menos 56 pessoas. © Agence France-Presse

Vítima de um ataque suicida a uma mesquita xiita em Peshawar, em março de 2022, que matou pelo menos 56 pessoas. © Agence France-Presse

O conflito ressuscitou em 2014, após um acordo de paz coordenado pelo governo do Paquistão não ter sido bem sucedido. Em resposta, o TTP atacou o aeroporto internacional de Karachi, o centro financeiro do país; uns meses depois, em dezembro, atacaram uma escola em Peshawar. Quase 150 pessoas morreram, sobretudo crianças, naquele que foi o pior ataque terrorista da história do país. 

Na ressaca desta tragédia, os partidos políticos paquistaneses aprovaram um plano nacional para combater ideologias extremistas e terrorismo no país, incluindo o regresso da pena de morte para terroristas condenados. Os militares avançaram contra o Território Federal das Áreas Tribais, uma zona não governada pelas autoridades paquistanesas que faz fronteira com o Afeganistão, e em dois anos anunciaram que tinham eliminado 3500 militantes extremistas — à custa da morte de quase 500 soldados. 

O corpo de uma das vítimas é transportado após ataque terrorista numa mesquita em Peshawar, a 5 de março de 2022. © Khuram Parvez / Reuters

O corpo de uma das vítimas é transportado após ataque terrorista numa mesquita em Peshawar, a 5 de março de 2022. © Khuram Parvez / Reuters

Mali: entre golpes de Estado e conflitos armados

O Mali já sofreu cinco golpes de Estado desde que se tornou independente da França, em 1960. O último aconteceu em maio de 2021 devido a tensões entre governo civil e militares. O Presidente Bah Ndaw e o primeiro-ministro Moctar Ouane foram presos por um grupo de soldados — ambos eram responsáveis por assegurar o governo de transição, formado depois do golpe militar de agosto de 2020. Este último golpe, em maio, foi liderado mais uma vez pelo coronel Assimi Goita, que passou a assumir o poder do país africano.

A guerra civil remonta a 2012: começou por uma insurreição separatista levada a cabo pelos tuaregues, aliados a grupos militares islamitas radicais, e encabeçada pelo Movimento Nacional de Libertação do Azawade. O Presidente na altura, Amadou Toumani Touré, foi deposto. A instabilidade política, os golpes de Estado contra o governo e os conflitos armados, incluindo atentados terroristas, continuaram nos últimos dez anos. A guerra civil no Mali evoluiu até aos dias de hoje.

Em 2021 a violência aumentou neste país africano, com uma onda de ataques e assassinatos, apesar da presença de várias forças antiterroristas e de operações militares apoiadas pela comunidade internacional. As principais redes terroristas e outros grupos armados continuam a ser uma ameaça no Mali, e a ONU estima que o conflito já provocou cerca de 48 mil refugiados.

Soldado das forças governamentais à procura de proteção após ataque terrorista, em março de 2013

Soldado das forças governamentais à procura de proteção após ataque terrorista, em março de 2013

Soldados franceses na cidade de Timbuktu

Soldados franceses na cidade de Timbuktu

Um rapaz olha para um campo de refugiados incendiado em Bamako, onde mil pessoas estavam a viver, em 2020

Um rapaz olha para um campo de refugiados incendiado em Bamako, onde mil pessoas estavam a viver, em 2020

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Soldado das forças governamentais à procura de proteção após ataque terrorista, em março de 2013

Soldado das forças governamentais à procura de proteção após ataque terrorista, em março de 2013

Soldados franceses na cidade de Timbuktu

Soldados franceses na cidade de Timbuktu

Um rapaz olha para um campo de refugiados incendiado em Bamako, onde mil pessoas estavam a viver, em 2020

Um rapaz olha para um campo de refugiados incendiado em Bamako, onde mil pessoas estavam a viver, em 2020

Tigray: um palco de ataques violentos contra civis

Em novembro de 2020, uma guerra civil brotou em Tigray entre o governo federal da Etiópia e as forças e líderes militares da região, lideradas pelo partido Frente Popular de Libertação do Tigray (FPLT). O conflito estalou quando o governo federal tentou controlar o governo regional, e a ofensiva militar evoluiu para uma limpeza étnica contra os tigreanos.

Oito meses após o início da ofensiva governamental em Tigray, em junho do ano passado, a FPLF tomou de assalto a capital, Mekelle, levando à retirada dos militares do governo. A região continua a ser palco de ataques violentos contra civis. Num relatório publicado há um mês, a Amnistia Internacional alertou que “as forças tigreanas violaram e
agrediram sexualmente pelo menos 30 mulheres e raparigas de 14 anos, muitas vezes nas suas próprias casas, depois de as obrigarem a cozinhar para eles”.

O conflito, que já dura há 16 meses, está a ter um impacto brutal sobre a população local. A Human Rights Watch condenou recentemente o bloqueio à entrada de ajuda humanitária, alimentos, assistência médica e combustíveis para a região. Estima-se que mais de 100 mil crianças estejam em risco de morte por desnutrição, segundo o Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). O número de pessoas que precisa de assistência médica urgente já chegou aos cinco milhões.

Cidadãos de Tigray, a viver na África do Sul, protestam contra o conflito na embaixada norte-americana, em Pretoria, a 26 de janeiro de 2022. © Agence France-Presse - Getty Images

Forças de segurança etíopes patrulham as ruas depois do exército ter assumido o controlo da cidade de Hayk, no norte do país, a 16 de dezembro de 2021. © Minasse Wondimu Hailu/Anadolu Agency - Getty Images

Um peregrino descansa num acampamento em Lalibela, junto a Trigray, durante a véspera da celebração do Natal Ortodoxo Etíope, a 6 de janeiro de 2022. © Eduardo Soteras / AFP

Cidadãos de Tigray, a viver na África do Sul, protestam contra o conflito na embaixada norte-americana, em Pretoria, a 26 de janeiro de 2022. © Agence France-Presse - Getty Images

Forças de segurança etíopes patrulham as ruas depois do exército ter assumido o controlo da cidade de Hayk, no norte do país, a 16 de dezembro de 2021. © Minasse Wondimu Hailu/Anadolu Agency - Getty Images

Um peregrino descansa num acampamento em Lalibela, junto a Trigray, durante a véspera da celebração do Natal Ortodoxo Etíope, a 6 de janeiro de 2022. © Eduardo Soteras / AFP

Nagorno-Karabakh: o "jardim negro" reivindicado por Azerbaijão e Arménia

Eis o principal dado que explica o longo conflito em Nagorno-Karabakh, no sul do Cáucaso: 95% da população é arménia, mas a região está inserida no Azerbaijão. Este pequeno território já pertenceu à União Soviética, que o constituiu como região autónoma na década de 1920. Mas quando a URSS caiu, em 1991, a região declarou oficialmente a sua independência — e a disputa territorial entre Arménia e Azerbaijão intensificou-se.

O risco de uma escalada militar volta agora a estar em cima da mesa, tal como em 2016 e em 2020: os esforços de mediação estão a fracassar, a militarização aumenta, e os cessar-fogos são frequentemente violados. Só em setembro de 2020, mais de mil soldados e civis foram mortos em ataques ao longo da fronteira. Tanto a Arménia como o Azerbaijão rejeitam a pressão da comunidade internacional para pôr fim às hostilidades, falhando os acordos de paz e continuando os combates.

Estima-se que a área reivindicada pelos dois países tem cerca de 2735 quilómetros quadrados. A Rússia está a apoiar a Arménia nesta disputa territorial, enquanto a Turquia está alinhada com o Azerbaijão. A palavra ‘Nagorno’ vem do russo e significa “montanhoso”, enquanto ‘Karabakh’ é de origem turca e significa “jardim negro”. A zona é extremamente rica em petróleo, o que alimenta o interesse dos países vizinhos e a continuação do conflito.

Exercícios militares do exército do Azerbaijão. © Azerbaijani Presidency / Anadolu Agency - Getty Images

Exercícios militares do exército do Azerbaijão. © Azerbaijani Presidency / Anadolu Agency - Getty Images

Exercícios militares do exército do Azerbaijão. © Azerbaijani Presidency / Anadolu Agency - Getty Images

Exercícios militares do exército do Azerbaijão. © Azerbaijani Presidency / Anadolu Agency - Getty Images

Cabo Delgado: uma ferida aberta em Moçambique

A província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, nunca registou tantas pessoas raptadas nem casas destruídas como em 2022. A região é alvo de ataques terroristas desde 2017, levados a cabo por rebeldes armados ligados ao Estado Islâmico.

A insegurança tem aumentado desde julho, quando uma ofensiva de tropas governamentais apoiadas pelo Ruanda começou a reconquistar algumas regiões dominadas por rebeldes. Além do Ruanda, os grupos armados estão a ser combatidos pelas forças governamentais de Moçambique e da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral.

As forças armadas portuguesas estão a ajudar como podem — e Marcelo Rebelo de Sousa foi a Moçambique no dia 17 de março dizer isso mesmo. No entanto, os ataques dos insurgentes estão a ficar cada vez mais frequentes. “A situação militar e de segurança das populações em Cabo Delgado continuam a constituir uma preocupação nacional”, notou há um mês o chefe da bancada do Movimento Democrático de Moçambique, Lutero Simango. Segundo o projeto ACLED, o número de mortes já ultrapassou as 3100. Há também mais de 859 mil deslocados, dão conta as autoridades moçambicanas.

Soldados moçambicanos na cidade de Pemba, em setembro de 2021

Soldados moçambicanos na cidade de Pemba, em setembro de 2021

Demonstração da marinha, em Pemba

Demonstração da marinha, em Pemba

Patrulha de soldados ruandeses em Afungi, a 22 de setembro de 2021

Patrulha de soldados ruandeses em Afungi, a 22 de setembro de 2021

Soldado ruandês em patrulha perto de Palma, em setembro de 2021

Soldado ruandês em patrulha perto de Palma, em setembro de 2021

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Soldados moçambicanos na cidade de Pemba, em setembro de 2021

Soldados moçambicanos na cidade de Pemba, em setembro de 2021

Demonstração da marinha, em Pemba

Demonstração da marinha, em Pemba

Patrulha de soldados ruandeses em Afungi, a 22 de setembro de 2021

Patrulha de soldados ruandeses em Afungi, a 22 de setembro de 2021

Soldado ruandês em patrulha perto de Palma, em setembro de 2021

Soldado ruandês em patrulha perto de Palma, em setembro de 2021

Afeganistão: uma "crise abrupta e crescente" forçada pelos talibãs

Os talibãs de guarda num posto de controlo em Herat, a terceira cidade mais populosa do Afeganistão, a 18 de fevereiro de 2022. © Wakil Kohsar / Agence France-Presse - Getty Images

Os talibãs de guarda num posto de controlo em Herat, a terceira cidade mais populosa do Afeganistão, a 18 de fevereiro de 2022. © Wakil Kohsar / Agence France-Presse - Getty Images

Os talibãs tomaram o controlo de grande parte do Afeganistão rural desde que as tropas norte-americanas começaram a última fase da retirada no início de maio, no ano passado. O controlo do resto do país culminou no dia 15 de agosto, quando os talibãs ocuparam simbolicamente o Palácio Presidencial, em Cabul, a capital do país.

O anterior regime do movimento fundamentalista governou o Afeganistão entre 1996 e 2001. Duas décadas depois, os talibãs ganharam a guerra contra o exército afegão — que na verdade não mostrou grande resistência — e voltaram ao poder. No início deste ano, a Human Rights Watch alertou que os talibãs estão a causar uma “crise abrupta e crescente” de direitos humanos no país: “fizeram recuar imediatamente os avanços dos direitos das mulheres e a liberdade de expressão”.

As ações militares das forças islamitas aumentaram quando as tropas estrangeiras, nomeadamente Estados Unidos e forças da NATO, começaram a fase final da retirada do Afeganistão. O Presidente Ashraf Ghani culpou a deterioração da segurança com a retirada rápida dessas tropas, após 20 anos de operações militares no país. A crise humanitária está em marcha — e agora o Ocidente está a prestar menos atenção.

Nota metodológica

O Expresso selecionou 18 conflitos ativos em vários pontos do globo e sem uma aparente resolução à vista num futuro próximo. As escolhas foram feitas com base no trabalho do Council on Foreign Relations, um think tank norte-americano que acompanha assuntos internacionais e atualiza regularmente a situação nos vários países atualmente em guerra, tendo essa informação sido cruzada com outras fontes como o “The Armed Conflict Location & Event Data Project” e o “International Crisis Group”. 

Outros países poderiam ter entrado na lista: por exemplo a Venezuela, onde o regime ditatorial de Nicolás Maduro continua a alimentar uma gigantesca crise humanitária. No entanto, não há notícia de mortes relacionadas com a instabilidade política e a oposição ao regime desde o início do ano — e muito menos desde que a Guerra na Ucrânia começou. Ainda na América do Sul, há o caso do México: o crime organizado relacionado com o tráfico de droga está cada vez mais violento e a ser combatido pela polícia e pelas forças armadas — provando que o Estado e as instituições democráticas existem e estão a funcionar.

Fontes

Council on Foreign Relations
United States Institute of Peace
Institute for the Study of War
Borgen Project
Lawfare
Foreign Affairs
The Armed Conflict Location & Event Data Project
International Rescue Committee
International Crisis Group

Créditos

Texto Tiago Soares e Mara Tribuna
Fotos Getty Images, AFP, Reuters, Expresso
Webdesign Tiago Pereira Santos
Infografia Sofia Miguel Rosa e Mara Tribuna
Apoio Web João Melancia
Coordenação Joana Beleza
Direção João Vieira Pereira