ESPECIAL: FICA NA MINHA TERRA
Da tradição a um mundo novo
A Comunidade Chinesa em Portugal
Desde sempre souberam inserir-se na sociedade portuguesa e conquistar um espaço próprio. Protagonistas de uma imigração maioritariamente económica, estão presentes, sem exceção, em todo o país. São, paradoxalmente, uma comunidade muito fechada sobre si. Reservada. Que não quer falar sobre ela própria. Poder-se-á tirar os chineses da China, mas não a China dos chineses? Contudo, os ventos estão a mudar e com eles as novas gerações de imigrantes. À medida que o melting pot se intensifica, surge uma nova massa de descendentes chineses. Aberta a Portugal e ao mundo.
I
A Serpente
Lanternas vermelhas ornamentam, de uma ponta à outra, a Alameda Dom Afonso Henriques, em Lisboa. Erguem-se acima das bancas que ladeiam o relvado, para oferecer a quem passa uma amostra dos costumes chineses. O vestuário. A medicina tradicional. A escrita. Lá ao fundo, junto à fonte luminosa, está montado um palco. Crianças interpretam músicas e danças tradicionais, vestidas a rigor com a indumentária de festa chinesa. O ano novo chinês - o ano da Serpente (símbolo de transformação e sabedoria) – chegou e é motivo para celebração.
Quando se cruza o jardim, a imersão aprofunda-se. O aroma a baos, crepes e massa chinesa transporta para o Oriente. Mas basta dar mais dois passos em frente e a sensação olfativa é contrastante. É-se invadido pelo cheiro a fritos. Em óleo crepitante. Vem da banca de farturas e churros - típica de qualquer festa popular portuguesa – que está posicionada mesmo ali ao lado da gastronomia chinesa.
É algures entre estas duas bancas que encontramos Cristina Li e é algures entre estes dois mundos que ela existe. Os dois mundos entre os quais cresceu. E os dois mundos em que vive.
Apesar dos traços orientais, Cristina sente-se, muitas vezes, muito mais portuguesa do que chinesa. Já nasceu em Portugal. Pertence à segunda geração de uma família chinesa que imigrou para o país há perto de três décadas, à procura de melhores condições de vida. Em casa, fala português com o pai e mandarim com a mãe. E aqui, apesar de afirmar que prefere a comida chinesa, é um churro que escolhe para o lanche.
"O meu pai é de Pequim e a minha mãe é de Yantai", revela. A primeira, a gigante capital chinesa, é um dos maiores centros financeiros, políticos, diplomáticos e culturais do mundo - atualmente com 22 milhões de habitantes, mais de duas vezes a população de Portugal inteiro. A segunda é uma cidade portuária no nordeste da China, com cerca de 7 milhões de residentes. O nome "Yantai" significa literalmente "Torre de Fumo" e deve-se às torres construídas naquela área pelas quais, antigamente, eram enviados sinais, para avisar da presença de piratas japoneses que ameaçavam a zona.
Cristina, em criança, com a irmã, na praia em Yantai, a terra da mãe
Foi a partir desta realidade tão díspar que a família de Cristina Li chegou a Leiria, nos anos 90 do século passado.
"O meu pai veio primeiro, apalpar o terreno", conta. "Ele estudou na Faculdade de Letras, em Lisboa, durante algum tempo. Depois, desistiu do curso e abriu um restaurante chinês em Leiria."
A mãe chegou de seguida para se juntar a ele e ajudar no restaurante. Com muito trabalho e dedicação, o negócio correu bem e conseguiram abrir um segundo estabelecimento em Leiria - cidade onde viria a nascer Cristina, hoje com 25 anos.
II
"Não falamos muito sobre nós"
Quando pretende saber mais sobre o passado dos pais, a vinda destes para Portugal, Cristina Li depara-se com algumas reservas. Tem de "puxar por eles" para arrancar alguma informação. São muito reservados. Uma característica que não é, de todo, aplicável apenas à família de Cristina, mas, como a própria aponta, um traço cultural de toda uma comunidade.
"Na cultura chinesa, nós não falamos muito sobre nós, sobre as dificuldades do passado, nem falamos muito de emoções", constata.
Uma particularidade que se tem afigurado um desafio, ao longo dos anos, para os investigadores que têm procurado estudar a comunidade chinesa em Portugal. É muito difícil conseguir que os cidadãos chineses participem nas pesquisas e nos estudos que têm como objetivo conhecê-los melhor.
Sofia Gaspar reconhece que se trata de uma comunidade algo fechada. A investigadora do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa que estuda a imigração chinesa em Portugal descreve, ainda assim, uma população "muito heterogénea", quer "ao nível das faixas etárias", quer "ao nível de classes sociais", ou da "proveniência geográfica" na China e também do tempo de imigração (isto é, de quando chegaram ao país).
Curioso será perceber que a primeira vaga de chineses em Portugal, como explica Sofia Gaspar, nem sequer veio da China. Recuemos até ao antigo Império Colonial Português, no final do século XIX. Na altura, havia bastante trabalho agrícola nas colónias portuguesas, o que levou muitos chineses das províncias do Sul da China, "pessoal não qualificado", a emigrar para países como Moçambique e Timor-Leste, para trabalhar, por exemplo, nas plantações.
"A comunidade chinesa, progressivamente, passou a estar cada vez mais incluída na sociedade moçambicana", refere a investigadora.
Quando se dá o 25 de Abril de 1974, que provoca o movimento dos "retornados" das colónias, alguns desses chineses acabam por ter Portugal como novo destino. "Há um grupo muito interessante de chineses moçambicanos que nunca tinham estado em Portugal e que entram em Portugal nessa época. Vêm e tornam-se, de alguma forma, relativamente bem integrados na comunidade portuguesa", relata Sofia Gaspar.
Já os primeiros imigrantes chineses a chegar a Portugal vindos, de facto, da China - também no século XX -, eram "comerciantes ambulantes", que apareceram no Norte do país, refere a investigadora.
Esses chineses pioneiros, que se instalariam no Porto, eram os avós de Y Ping Chow, o atual presidente da Câmara de Comércio de Pequenas e Médias Empresas Portugal – China e antigo presidente da Liga dos Chineses em Portugal (abandonou o cargo em fevereiro deste ano, depois de mais de três décadas aos comandos).
"Começaram a trabalhar do zero. Vieram sem saber a língua, sem conhecer as pessoas e sem ter dinheiro."
"Os meus avós, em 1930 e tal, vieram de pés descalços, praticamente", conta. "Começaram a trabalhar do zero. Vieram sem saber a língua, sem conhecer as pessoas e sem ter dinheiro."
"Eram vendedores ambulantes. Traziam os produtos típicos da China", partilha. Passado algum tempo de itinerância, a família Chow consegue plantar raízes na cidade e abrir um espaço industrial: uma fábrica de gravatas.
É nessa altura que o pai de Y Ping Chow se muda da China para Portugal, para se juntar aos avós. "O meu pai chegou aqui em 1958. Veio e ajudou na fábrica."
Alguns anos depois, seria o próprio Y Ping Chow a vir para ao pé do pai e dos avós. Deixou para trás a província de Zhejiang, no Leste da China, onde nascera, e rumou ao Norte de Portugal.
"Vim no ano de 1965. Era pequenino", recorda. "Quando cheguei, praticamente não havia chinês nenhum. Os portugueses, quando viam um chinês, achavam muito estranho. Mas adaptei-me mais ou menos bem, porque fui para a escola primária."
Em 1966, o pai de Y Ping Chow criava aquele que viria a ser o primeiro restaurante chinês no Porto - hoje considerado uma loja de tradição histórica da cidade, mesmo junto à Ponte D. Luís, que atravessa o Douro.
"No princípio, foi um bocadinho difícil, porque poucos portugueses conheciam a comida chinesa. Até pensavam que era comer carne de cão, baratas, moscas, essas coisas todas."
Y Ping Chow recorda como, na altura, os principais clientes do restaurante chinês eram os portuenses "da alta classe". "Porque viajavam e conheciam" outras gastronomias.
O restaurante do pai de Y Ping Chow foi o primeiro a servir comida chinesa no Porto e está em funcionamento até aos dias de hoje (Créditos: Facebook Restaurante Chinês)
"Eu andava a estudar e fazia de porteiro no restaurante, mas já ganhava bom dinheiro", lembra. "Abria a porta, estendia a mão, e caíam moedas. Era bom! Ia duas ou três horas e já dava para ganhar o ordenado de um funcionário do dia inteiro!"
III
O 'boom' chinês
Éa partir dos anos 90 do último século que se dá, verdadeiramente, o grande 'boom' da imigração chinesa para Portugal, como lhe chama a investigadora Sofia Gaspar.
"É, fundamentalmente, quando Portugal, com os dinheiros europeus, precisa realmente de mão de obra", esclarece. Eram, sobretudo, migrantes vindos do Sudeste da China - uma região com "grande tradição de imigração, em geral, para todo o mundo".
"A entrada em Portugal dá-se contextualizada num âmbito europeu (também para Espanha, Itália, França,...), ou seja, segue a imigração destes imigrantes não qualificados que tentavam a boa fortuna, a sorte", nota a investigadora.
A passagem da soberania de Macau para a China, em 1999, e o aparecimento de novas leis de regularização de imigrantes em Portugal são também potenciadores da vinda de mais pessoas. E são os imigrantes que se estabelecem no país por esta altura que começam a dar uma visibilidade de outra magnitude à comunidade chinesa em Portugal.
"Vinham para trabalhar. Não tinham tempo para socializar, nem para aprender português. E a língua faz muito".
"São aqueles que abrem as lojas dos chineses - então designadas "lojas dos trezentos" - e muitos restaurantes", nota Sofia Gaspar. Empreendedores, dentro de uma comunidade "muito endogâmica, muito fechada em si mesma".
"Era uma comunidade que se auto-recrutava entre si. Era fácil a pessoa chegar da China e encontrar trabalho", repara a investigadora.
Estes chineses, quase todos pouco qualificados, "vinham para trabalhar". "Portanto, não tinham tempo para socializar. Não tinham tempo nem para aprender português, inicialmente, até porque é difícil", aponta Sofia Gaspar. "É difícil que haja, por parte dessas primeiras gerações, uma saída do grupo para a sociedade portuguesa. A língua faz muito."
O ex-presidente da Liga dos Chineses em Portugal corrobora. "Grande parte da dificuldade é a língua. Podem estar cá há 20 ou 30 anos, mas para falar corretamente e entender corretamente é difícil", declara Y Ping Chow.
Um problema que pode até ter repercussões na saúde desta comunidade. De acordo com um estudo da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) e do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (CINTESIS), feito em 2023, as barreiras linguísticas e culturais estarão a condicionar o acesso da população chinesa imigrante ao sistema de saúde português. Dificuldades de comunicação e falta de conhecimento dos hábitos chineses por parte dos profissionais de saúde são as principais falhas apontadas.
"Os filhos, que já estão bem adaptados, ajudam os pais"
As dificuldades podem, apesar de tudo, começar a esbater-se com a ajuda da segunda geração de imigrantes. "Os filhos, que neste momento já estão bem adaptados, ajudam os pais", salienta Y Ping Chow.
São os descendentes desses chineses que chegaram ao país na viragem do milénio. Os jovens que já aprenderam, desde cedo, a língua portuguesa. Que frequentam a escola pública em Portugal.
IV
"Dizia a todos que não era chinesa"
Ser uma menina chinesa numa escola no Centro de Portugal "era, às vezes, um bocadinho estranho", admite Cristina Li.
"Não havia muitos chineses", explica. "Acho que, na verdade, eu e a minha irmã fomos as primeiras chinesas na escola."
Confessa que, sendo das únicas crianças na terra com traços orientais, na altura, rejeitava a própria identidade cultural.
"Quando era mais nova, não gostava de ser chinesa", admite. "Não queria ser chinesa. Dizia a todos os meus amigos que não era."
Cristina com os colegas, na infância, a celebrar o Carnaval português
"Os meus amigos iam à missa, e eu também queria ir à missa, apesar de não fazer parte da minha cultura."
Ainda assim, Cristina reconhece que não foi tão difícil para ela como para a irmã mais velha, que, entrando para a escola primeiro, teve de "abrir caminho". E chegou a ser alvo de bullying - "ouvia boquinhas desagradáveis e desnecessárias" - por ser de origem chinesa.
"Lembro-me que, quando era mais nova, gozavam imenso connosco. Era uma coisa um bocadinho desagradável."
A jovem aponta "o preconceito e os estereótipos" como a maior dificuldade que a família atravessou na história de imigração da família. Afirma que, muitas vezes, são dirigidos aos cidadãos de cultura chinesa "nomes e palavras ofensivos". "As pessoas acham que não magoa."
Cristina conta um episódio em que teve um problema com o carro e em que se deslocou a uma oficina. Diz que o mecânico a discriminou, cobrando-lhe mais do que aquilo que tinha sido orçamentado. No final, "chamou-me ‘chinoca’", relata.
"Achei uma falta de respeito e, na altura, fiquei mesmo chateada. Confrontei o senhor. E ele respondeu: "Tu és chinoca, o que é que queres?""
"É algo frequente: as microagressões", reforça a investigadora Sofia Gaspar. "São as tais piadas muitas vezes proferidas: "Tens os olhos em bico!", "só comes arroz!"."
"Estão presentes de uma forma muito frequente no quotidiano e, pelo tom despreocupado e informal, podem passar como piadas e não como ofensas. Mas podem ferir continuamente - até por parte de um amigo, de um colega - porque estão lá a pisar e a macerar a identidade dessa pessoa", nota. "Isso é algo que está absolutamente enraizado na comunidade portuguesa."
Cristina Li concorda: "Honestamente, acho que nunca vai desaparecer".
"As microagressões estão presentes no quotidiano e, pelo tom despreocupado e informal, passam como piadas e não como ofensas.
Mas podem ferir continuamente"
O gatilho da pandemia
A situação da comunidade chinesa imigrante atingiu, contudo, outros patamares aquando da pandemia de Covid-19. "Houve uma explosão - não só em Portugal, mas a nível mundial - de identificação do ‘vírus chinês’", nota Sofia Gaspar.
Pelo vírus ter sido descoberto, inicialmente, em território chinês, a comunidade chinesa foi responsabilizada pela pandemia, o que levou a episódios de animosidade contra os imigrantes da China no Ocidente.
"Qualquer pessoa de origem oriental era olhada com estranheza na rua." Sofia Gaspar refere comportamentos discriminatórios como "sentar-se no outro lado do café, não entrar em lojas de produtos chineses, ou, se a pessoa usasse máscara, afastar-se".
Experiências que Cristina Li viveu na primeira pessoa. "Senti um bocadinho isso, mais em particular em Lisboa. Nos transportes públicos, as pessoas afastavam-se de mim."
"Houve depois outro tipo de discriminação mais explícita: o "volta para a tua terra!", "tu trouxeste o vírus!"", expõe Sofia Gaspar. Em Portugal, os negócios como restaurantes chineses foram afetados e houve até atos de vandalismo em lojas da comunidade chinesa.
A investigadora afirma que, com o fim da pandemia, os "ânimos amenizaram". À medida que o vírus se vai dissipando, também as memórias destes tempos se esbatem.
"O sentimento anti-imigração tem vindo a crescer. A aversão ao outro"
Mas, com ou sem Covid-19, uma coisa é, para Sofia Gaspar, "inegável": "O sentimento anti-imigração tem vindo a crescer. A aversão ao outro".
O último barómetro da Fundação Francisco Manuel dos Santos confirma-o, e também em relação à comunidade chinesa em particular: mais de metade dos portugueses inquiridos defende que o número de imigrantes chineses no país deve diminuir.
"Está muito ligado ao nascimento de partidos como o Chega", assume a investigadora, para quem a presença desta força política na Assembleia da República veio legitimar este tipo de posições.
"Já se perde a vergonha de se manifestar o desprezo relativamente ao outro. E, portanto, o outro torna-se o bode expiatório", repara. "Quando um imigrante comete um crime, toda a comunidade imigrante é vista como criminosa. Mas, quando um português comete um crime, ninguém generaliza à comunidade portuguesa."
""Perde-se a vergonha de se manifestar o desprezo relativamente ao outro.
E o outro torna-se o bode expiatório"
Sofia Gaspar elege esta realidade como "o grande desafio dos próximos tempos" e aponta a "informação e educação" como luzes para iluminar o caminho.
"É também muito importante, por exemplo, que haja visibilidade: pessoas de outras comunidades nos órgãos políticos, no Parlamento, em cargos de topo. Que se vão inserindo num espaço público de direito deles. Agora, o problema é como chegam lá. Porque têm toda uma série de barreiras até conseguirem lá chegar."
V
Aprofundar relações (económicas) num mundo em ebulição
Se barreiras há para que os imigrantes vinguem no país de acolhimento, Y Ping Chow derrubou-as todas. Representou, durante décadas, a comunidade, à frente da Liga dos Chineses em Portugal, seguindo o legado do pai, que a criou. Fez parte do Conselho para as Migrações, que era um órgão consultivo do Alto Comissariado. E das origens humildes dos avós, os comerciantes ambulantes que tentaram a sorte no Porto, fez uma espécie de império: prosseguiu os estudos, expandiu a atividade comercial a várias áreas além da restauração, para importação e exportação de bens.
"E tenho desenvolvido outras associações, entre as quais a Câmara de Comércio de Pequenas e Médias Empresas Portugal-China - que neste momento está a dar-me um bocadinho mais de trabalho", afirma, entre sorrisos.
Nesta organização, Y Ping Chow trabalha com portugueses que querem internacionalizar o negócio e vender produtos para a China e com empresas chinesas – sobretudo em Macau - que querem vender para Portugal. Neste momento, está também a apostar no investimento de membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) na China, numa nova zona que o governo chinês quer desenvolver. Foi convidado para ser o representante de captação de investimento para a região.
Y Ping Chow afirma que os chineses em Portugal são, agora, "uma comunidade mais rica, com mais poder". Mas reconhece que estes chineses de que fala não são, na maioria, aqueles que vieram nos anos de 1990 e 2000, à procura de trabalho. Não. Esta é uma vaga mais recente. Que vem para investir.
"São até pessoas com poder. São os empresários que procuram internacionalizar os seus negócios na China. Portanto, é uma estrutura diferente, que tem conhecimentos diferentes e um poder económico totalmente diferente", constata Y Ping Chow.
Só em 2024, os chineses foram a segunda nacionalidade a receber mais autorizações de residência em Portugal para investimento – segundo o último relatório da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA). Foram 296 as autorizações para investimento atribuídas a chineses, só atrás das concedidas a norte-americanos.
As portas de Portugal para estes investigadores chineses abriram-se com a criação do programa de "Vistos Gold", em 2012. Eram oferecidos títulos de residência mediante a compra de imóveis em Portugal - e o número de imigrantes chineses no país aumentou, assim, drasticamente.
"Depois da crise financeira, Portugal começa a ter políticas de atração de investimento estrangeiro, nomeadamente com os Vistos Gold, e, mais tarde, com uma certa flexibilização e com acordos específicos entre as universidades portuguesas, no meio académico. Nessa altura, começa a existir uma atenção exponencial para uma nova comunidade chinesa que começa a chegar. Investidores puros. Muitas vezes, milionários, que têm advogados, sociedades a investir por eles. Toda uma indústria de investimento", descreve a investigadora Sofia Gaspar.
"Temos capital chinês em grandes empresas portuguesas e de setores estratégicos (...). Há uma política externa e económica muito clara por parte da China. E a crise económica, num contexto neoliberal, facilitou claramente a entrada de capital chinês e, com o capital, quadros expatriados que eram colocados aqui", elucida.
O programa, a que o governo português, então liderado por António Costa, pôs fim em 2023, deu aso a polémicas por esquemas de corrupção e lavagem de dinheiro. Y Ping Chow desvaloriza. "Corrupção há sempre. Com os chineses, com os americanos, com os franceses, com os brasileiros,... Há sempre."
"Os imigrantes chineses são amigos dos portugueses. E também posso dizer que, com a vinda dos empresários chineses, os portugueses estão vivendo melhor, porque conseguem comprar coisas mais baratas e com menos dinheiro", insiste.
É por isso que, defende Y Ping Chow, os mais afetados pelas restrições às importações chinesas que os Estados Unidos da América, mas também a União Europeia, pretendem aplicar serão as populações locais.
"Quem paga o imposto são os clientes. Não vão conseguir travar a importação de produtos chineses e vão pagar mais imposto. Quem sofre são os consumidores", declara, criticando as "manias de superioridade" do Ocidente.
"No século passado, a China estava pobre e os ocidentais estavam ricos - e foram até mesmo à China fazer protocolos não equilibrados. Neste momento, ao ver um povo que era pobre estar a ultrapassá-los, não se sentem muito bem. Principalmente os americanos. E os europeus vão todos atrás dos americanos."
"Ao ver um povo que era pobre a ultrapassá-los, os ocidentais não se sentem muito bem. Principalmente os americanos.
E os europeus vão todos atrás dos americanos"
Os imigrantes de lifestyle e os cérebros
Para lá dos imigrantes económicos, há ainda um novo grupo de chineses a inserir-se na sociedade portuguesa. Aquilo que a investigadora Sofia Gaspar designa como "lifestyle migrants" - ou "imigrantes de estilo de vida".
"Não são os investidores puros, são as famílias de classe média acomodada", repara. "Muito também pela dificuldade que tinham no investimento imobiliário na China e pela alta dos preços que estava a existir, procuraram outros mercados e começaram a vir para cá."
A especialista aponta que este grupo de chineses vem muito atraído "pelas condições de não poluição, de bom ambiente, boa qualidade de vida e também boas oportunidades para os filhos estudarem (em ambientes mais tranquilos, mais calmos, menos contaminados)".
"No caso de Portugal, muitos são chineses da China continental, que vão para Macau e depois dão o salto para o território português", nota Sofia Gaspar. Mas, em muitos casos, Portugal não é o destino final.
"Alguns vêm aprender a falar a língua portuguesa - porque há um Brasil, há uma Angola, há outros territórios e outros continentes onde uma futura carreira mais internacional pode ser feita."
VI
Construir pontes
"És a Cristina?", "Eu sigo-te!", "Podemos tirar uma foto contigo?". Em poucos minutos, Cristina Li é rodeada por vários grupos de jovens raparigas, que a abordam no meio da rua.
Cristina Li é uma influencer em ascensão na cena nacional da criação de conteúdo nas redes sociais. E uma das poucas em Portugal com traços asiáticos neste mundo do digital.
As jovens que a abordam na rua fazem parte dos milhares de seguidores que a acompanham nas redes sociais e com quem partilha, diariamente - seja no Instagram, no TikTok ou no YouTube - fotos e vídeos sobre Moda e Lifestyle. Querem falar com ela, tirar uma fotografia, conhecê-la. São adolescentes. E chinesas. Todas elas. Porque a representatividade, de facto, importa.
Num dia normal, Cristina acorda e grava logo um vídeo para publicar no TikTok ou para transformar num reel para o Instagram. Faz o pequeno-almoço (e aproveita para tirar fotografias dele, porque nenhum "conteúdo" é desperdiçado!). Segue para o trabalho. Mas não demora muito até haver mais conteúdo para gravar: à hora de almoço, aproveita para tirar mais algumas fotografias, com a ajuda da mãe ou de uma amiga. Volta para a empresa até ao final da tarde – e, depois de sair, "se ainda estiver luz", fotografa "mais uns looks".
Diz que, mais do que uma fonte de rendimentos, as redes sociais são uma fonte criativa. "Utilizo as plataformas digitais para inspirar pessoas e para ter algo que gosto de fazer, à parte do meu trabalho real."
Depois de ter concluído o ensino secundário em Portugal, Cristina foi para Londres estudar gestão. Terminado o curso, regressou a terras lusas e hoje vive em Lisboa, sozinha. Mas a forte ligação familiar, típica da cultura chinesa, continua. Trabalha com a mãe, num dos negócios da família: uma empresa de mobiliário de cozinha, importado da China. "Sou assistente pessoal, recursos humanos, diretora comercial, faço um bocadinho de tudo", ri.
A jovem divide, por isso, o tempo entre a gestão do negócio familiar e o mundo digital. Área em que começou a apostar "a sério" nos últimos dois anos (é até já representada por uma agência). E admite sentir que, como tem evoluído nas redes sociais, tem-no também feito na relação com a própria identidade cultural. Agora, veste-a com orgulho. Já não recusa ser chinesa. E inspira outras meninas a fazerem o mesmo.
"Gosto muito de ver este crescimento e esta mudança de mentalidade que tive ao longo dos anos. Tenho vindo a aprender mais sobre os costumes e também sei, agora, a importância de manter esta cultura e estas tradições, para depois levar para a próxima geração."
No coração de Cristina Li, contudo, há ainda correntes que a levam de uma maré para outra, sem a deixarem atracar num porto seguro.
"O meu maior obstáculo é sentir tanto que não pertenço em Portugal – mesmo sendo portuguesa – como que não pertenço na China".
"A uma pessoa com o fenótipo oriental, apesar de quase não falar mandarim, mesmo que nunca tenha até saído de Portugal, perguntam-lhe: "De onde é que és?", refere a investigadora Sofia Gaspar. "Essa estranheza quotidiana faz com que a presença na sociedade portuguesa seja sempre considerada como um certo compromisso de distanciamento."
Mas Cristina Li sabe o que fazer quando o mar é difícil de navegar: tentar construir pontes. "Acho que isso é o mais importante. Ter esta ponte, poder fazer esta comunicação entre os dois países."
Faz parte desta nova geração que, mantendo a identidade cultural chinesa viva, se adapta às novas realidades.
"As segundas gerações vão adaptando o conhecimento que tinham de negócios dos pais e fazem, por exemplo, inovações nos próprios restaurantes. Muitos deles inovaram, mudaram para ramen, etc", nota Sofia Gaspar. "Alguns têm profissões liberais, muitos já vão para a universidade. Progressivamente, vão-se inserindo na sociedade portuguesa, há casais interétnicos."
"Do futuro da comunidade chinesa fará parte a integração", assegura Y Ping Chow.
"A nova geração de chineses está já mesmo muito incluída.
O ‘melting pot’ é realmente evidente."
Até porque - quem diria? - reza a História que os tradicionais churros e farturas ibéricos têm, afinal, origem chinesa. Vai um youtiao?



