ESPECIAL: FICA NA MINHA TERRA
Amor em tempos de perceções
A Comunidade Indiana em Portugal
Há séculos de História em comum entre portugueses e indianos. A primeira viagem entre Portugal e a Índia, liderada por Vasco da Gama em 1498, é narrada por Luís Vaz de Camões n’“Os Lusíadas”. Por muito tempo, o povo indiano povoou o imaginário dos portugueses. Hoje, mais do que nunca, povoa o território português. Os indianos são já a segunda maior comunidade imigrante a viver em Portugal. E é tão grande quanto os desafios que enfrenta. Numa altura em que se proclama o triunfo das perceções sobre a realidade, como é, afinal, a realidade dos indianos que amam este país e aqui escolheram viver?
I
A última porta de entrada
É uma tarde de domingo. As mesas de jardim no pequeno largo da Calçada do Monte estão ocupadas. Rajinder Kumar senta-se, por isso, num muro. À sombra de uma árvore. Protege-se do sol que, em pleno outono, ainda aquece o bairro lisboeta da Graça. Combate o calor com uma cerveja. Portuguesa. Prefere-a às indianas. A acompanhá-la, um pacote de batatas fritas, que partilha, de boa vontade, com quem o aborda.
É o momento de descontração de Rajinder, depois da exigente semana de trabalho. Acaba de chegar de Olhão, no Algarve. “Trabalho como canalizador, numa empresa muito grande, a Mota-Engil”, revela, num português que lhe custa a sair. Fluentemente, só fala hindi. Ainda não aprendeu a nova língua. Mas esforça-se. Muito. Não desiste. Não desanima. Pega no telemóvel e, com a ajuda de uma aplicação de tradução, consegue comunicar.
Conta que, muitas vezes, está cinco dias por semana fora de casa. Viaja por todo o país para fazer canalizações em obras. “Samora-Correia, Amareleja, Moura, Setúbal, Vendas Novas, Pontinha, Alverca, Cascais,...Todo o lado!”
“Vou para todo o país para trabalhar nas obras.
Olhão, Samora-Correia, Amareleja, Moura, Setúbal,
Vendas Novas, Pontinha, Alverca, Cascais,... Todo o lado”
Recorre, mais uma vez, ao telemóvel, agora para mostrar, com orgulho, as imagens dos canos que montou. Adora o trabalho, o novo ofício que aprendeu. Na Índia, era condutor de veículos pesados. “Autocarros e camiões”, precisa.
A vida na terra onde nasceu - Haryana, no norte da Índia - não é fácil. Explica que as pessoas trabalham, mas, depois, em muitos casos, os patrões nem lhes querem pagar o que é devido. São maltratadas. Por isso, quis rumar a outro continente. Procurar uma outra vida em território português.
“Eu gosto de Portugal. E como tem trabalho, eu vim para aqui. Decidi vir trabalhar para a Europa”, diz Rajinder, hoje com 45 anos.
Vive no bairro da Graça, em Lisboa, numa habitação partilhada com outros imigrantes indianos. Seis pessoas, numa casa com três assoalhadas. Diz que paga 1200 euros por mês. O senhorio é português.
Rajinder partilha casa com outros imigrantes no bairro da Graça, em Lisboa
Todos os colegas de casa, tal como ele, garante, trabalham. Também nas obras, como serventes de pedreiro. Rajinder costuma ir para fora em trabalho à segunda-feira e só regressar na sexta. Mesmo a tempo. É o dia em que lhe cabe a ele fazer as limpezas e o jantar para todos lá em casa.
“Sexta-feira, sou eu a fazer tudo lá em casa. A cozinhar, lavar a roupa, limpar a casa de banho, limpar o quarto, tudo. Depois, noutro dia, é outra pessoa, e noutro dia, outra pessoa.”
Rajinder faz parte da mais recente vaga de imigração do subcontinente indiano para Portugal. Um tipo de imigração que tem “crescido exponencialmente” e veio mudar a distribuição de imigrantes da Índia em Portugal.
“Começou muito centrado na agricultura, particularmente no sul do país, em várias zonas do Alentejo, também no Algarve, na hotelaria, e hoje em dia espalhou-se pelo país fora”, refere Inês Lourenço, investigadora do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA) do ISCTE e professora naquela instituição universitária, que se tem dedicado ao estudo da comunidade indiana em Portugal. “Estes imigrantes estão espalhados também pelo comércio, são motoristas de TVDE, trabalham em companhias de distribuição de comida,...”
São indianos oriundos de regiões que podem ir desde o estado de Maharashtra a Bengala, passando por Tamil Nadu. Vêm à procura de “emprego, vida digna, oportunidades de trabalho”, refere Shiv Kumar Singh, presidente da Associação Casa da Índia, uma organização não-governamental que tem como missão apoiar os indianos em Portugal e promover o diálogo entre os povos.
“Em Portugal e na Índia, as realidades são completamente diferentes”, constata. “A Índia não tem o conceito de salário mínimo. E, mesmo fazendo o mesmo trabalho, aqui na Europa ganha-se mais.”
“As pessoas vêm porque há emprego”, frisa Inês Lourenço. “Há uma procura muito grande por mão de obra, particularmente pouco qualificada e barata, o que é atrativo num país em que, obviamente, as pessoas passam por dificuldades e tentam sempre procurar uma vida melhor”, aponta.
“Também há trabalhadores que, apesar de ocuparem estes empregos que não necessitam de grandes qualificações, são trabalhadores qualificados. Conheci várias pessoas em Odemira com bacharelatos, licenciaturas, mestrados, que estão a trabalhar nas estufas”, diz a investigadora.
O regime de entradas legais que Portugal mantinha até há pouco tempo tornava o país um dos mais atrativos, na incursão dos imigrantes indianos na Europa. “Fácil” é a palavra que se repete. “Portugal era o país europeu com uma entrada mais fácil, onde era mais fácil obter documentação”, refere Inês Lourenço. As coisas eram muito mais fáceis em comparação com os outros países”, reforça o presidente da Casa da Índia.
“Portugal era o país europeu com uma entrada mais fácil, onde era mais fácil obter documentação”
“Por exemplo, a manifestação de interesse era um instrumento que foi aproveitado por muita gente”, reconhece Shiv Kumar Singh. “Havia uma garantia de legalização, de autorização de residência.”
“Muitas destas pessoas encontraram em Portugal a última porta de entrada na Europa”, sublinha Inês Lourenço.
Mas depois de passar a porta, as facilidades sentidas à entrada começam a desaparecer.
II
“Uma mistura fantástica”
A vaga de migração da última década elevou os indianos à condição de segunda comunidade imigrante mais populosa no país - são mais de 98 mil aqueles que têm título de residência, de acordo com o último Relatório de Migrações e Asilo da Agência para a Integração Migrações e Asilo (AIMA). Mas muito antes deste percetível salto recente, já os indianos assentavam, no último século, raízes em Portugal.
“A população indiana é uma mistura fantástica, uma equação muito interessante”, assinala Shiv Kumar Singh.
As primeiras sementes foram plantadas na época da anexação do Estado Português da Índia (os territórios de Goa, Damão e Diu) pela União Indiana, em 1961 - que pôs fim a quatro séculos e meio de presença portuguesa naquele ponto do mundo. Na altura, uma grande comunidade de origem goesa fez as malas e veio para Portugal.
A investigadora do ISCTE Inês Lourenço explica que esta era uma comunidade que já tinha “uma ligação muito profunda” a Portugal.
“A maioria é de religião católica. Partilham uma língua e uma identidade ‘indo-portuguesa’”, refere a especialista, que nota que, mesmo antes da anexação do Estado Português da Índia, muitos destes goenses - essencialmente, os que pertenciam às elites -, já vinham estudar para Portugal.
“Temos um caso fantástico e de orgulho, o do [ex-primeiro-ministro] António Costa, que é de origem goesa, origem indiana”, aponta o presidente da Casa da Índia.
O segundo momento em que uma grande massa de população de origem indiana chega a Portugal dá-se após o 25 de Abril de 1974 e a independência das colónias africanas - em particular, de Moçambique, onde a maioria das comunidades vindas da Índia se tinha estabelecido.
“Tiveram de deixar tudo no país de nascimento e, depois, abraçar outro país, que é Portugal”, repara Shiv Kumar Singh. À semelhança dos portugueses retornados, “tiveram de lutar para criar a sua vida aqui”.
Esta comunidade que viria a estabelecer-se em Portugal é marcada pela diversidade. “Temos goeses de maioria católica, alguns católicos de Damão e Diu, e gujaratis maioritariamente hindus, mas também muçulmanos sunitas e ainda muçulmanos xiitas”, detalha a investigadora Inês Lourenço. “É profundamente heterogénea em termos religiosos. Mas partilha uma língua comum e uma identidade.”
O presidente da Casa da Índia corrobora que essa foi “uma grande vantagem” desta população que chegou nas décadas de 1970 e 1980. Tal como os indianos da primeira vaga, “conheciam bem a cultura portuguesa, então a integração não foi tão difícil como agora tem acontecido”.
Socioeconomicamente também bastante variada, é uma comunidade que vai, hoje, já na quarta geração e que encontramos nas mais diversas ocupações e áreas profissionais. “Está ainda, em muitos casos, ligada ao comércio, mas com os mais jovens a ingressarem no ensino superior nas mais variadíssimas áreas, desde a medicina à engenharia”, diz Inês Lourenço.
Só a partir de meados da década de 1990 é que começariam a chegar a Portugal imigrantes indianos sem qualquer relação com o passado colonial português. “Inicialmente, grupos vindos do Punjab. Uma população que, na sua maioria, pratica a religião Sikh.”
“Vêm diretamente da Índia, não falam português e estão completamente desenraizados daquilo que é a cultura portuguesa, comparativamente com os grupos que estavam em Portugal. Portanto, a dificuldade de integração é muito maior”, sustenta a investigadora.
Muitos vieram para trabalhar nas obras da construção da Expo 98. Outros dedicaram-se ao comércio. “Obtêm empregos que exigem menos qualificação e têm dificuldades linguísticas, que persistem, em muitos casos, até aos dias de hoje.”
Uma boa parte consegue a documentação para a legalização e migra depois para outros países europeus, como o Reino Unido e a Alemanha. “Mas muitos optam também por ficar em Portugal.”
III
As barreiras da comunicação
Telemóveis, auscultadores, cartões de memória,... Há todo o tipo de dispositivos eletrónicos e de telecomunicações espalhados. Ocupam todo o espaço, desde o chão até ao teto da loja. Ainda que pareça impossível, Kirti Unadkat e o marido arranjam, de alguma forma, maneira de se moverem entre todo o equipamento exposto e de atenderem os clientes que ali vão entrando.
São um casal sexagenário e os proprietários desta loja de telemóveis na Damaia, concelho da Amadora, nos subúrbios da capital. O negócio foi o primeiro com donos indianos a abrir na Damaia, conta Kirti. Corriam os anos 90 do século passado. Hoje, ninguém o diria, mas a loja começou por ser um pronto-a-vestir. Chamaram-lhe “Mansi”, o nome da filha, já nascida em Portugal, e que significa "mulher", mas também “intelecto”.
O negócio começou sendo bem-sucedido, de tal forma que decidiram comprar a loja ao lado. Uma papelaria. Ainda a tiveram aberta como tal durante uns tempos. Mas acabaram por ter de mudar de ramo. O estabelecimento fazia concorrência a uma outra loja de alto gabarito na zona: o negócio da família do antigo jogador do Benfica (e agora presidente do clube) Rui Costa. Concorrência de peso. Ainda por cima, sendo o marido de Kirti benfiquista.
“Coitadinho!”, diz Kirti, com um sorriso sincero, sobre o concorrente de negócio. “Nós somos muito amigos dele! Quando tínhamos o pronto-a-vestir, a mãe dele ainda comprou roupa aqui. Agora é que ele já nunca está cá.”
O casal cedeu à lei do mercado e transformou então o segundo negócio. É agora um estabelecimento de restauração: uma casa de kebabs - apesar de o kekab não ser um prato tradicional indiano (tem origem no Médio Oriente) e de a família Unadkat até ser, na realidade, vegetariana.
Se, de um lado, a loja de telemóveis é ladeada pela casa de kebabs, do outro, fica a paredes-meias com o negócio vizinho (um que não compraram) da mercearia mais antiga do bairro.
“Já cá estavam antes de nós”, conta Kirti. Entra, com um sorriso, para cumprimentar o vizinho. “Onde está a Célia?”, pergunta, descontraidamente, com a confiança de quem há muito se conhece. Percebe-se a familiaridade, o sentimento de comunidade. Kirti é dali. Aquele é o bairro dela.
Chegou a Portugal em 1995. Veio ter com o marido, que estava no país há três anos e tinha já aberto o primeiro negócio do pronto-a-vestir. Uma mudança de vida. Na Índia, Kirti estudara Contabilidade, mas não trabalhava. Ficava em casa, com as quatro irmãs. Eram os homens, o pai e os dois irmãos rapazes, que tinham a obrigação de sustentar a família. Trabalhavam na indústria do algodão.
O marido de Kirti foi à Índia de propósito para o casamento. Um casamento arranjado. Foi o pai dela quem lhe escolheu o noivo. Mas, por sorte, Kirti não desgostou da escolha.
“Ele veio ver-me à minha casa. Eu gostei dele, ele gostou de mim”, conta. “Ele é diferente. Não é como outros indianos, que gostam de mandar em tudo. É muito bom rapaz. E então casei.”
Em quinze dias, conheceram-se, ficaram noivos e contraíram matrimónio. E assim se viu a viajar mais de 9 mil quilómetros. De Gujarate para a Damaia.
Um ano depois, nascia, no novo país, a única filha do casal. Um capítulo difícil na vida de Kirti. A bebé teve problemas à nascença.
“Sofri um bocadinho, no hospital”, desabafa Kirti. “Não sabia falar português. A minha filha estava nos cuidados intensivos e, como não falava a língua, eles não conseguiam explicar-me também o que é que ela tinha.”
Ainda hoje, passado décadas, Kirti sente-se insegura em expressar-se em português. Nunca teve aulas. Tudo o que sabe aprendeu na loja, a falar com os clientes.
Seja para Kirti, que está cá há trinta anos, ou para Rajinder, que está cá há três, a língua é uma barreira difícil de ultrapassar.
“O problema da língua é, de facto, a maior dificuldade de integração”, assinala a investigadora Inês Lourenço. “Quando uma comunidade não consegue aprender e falar fluentemente a língua”, há constrangimentos: desde o “acesso ao mercado de trabalho” até à comunicação dos pais imigrantes com os professores dos filhos nas escolas.
A antropóloga observa que “há muito esta ideia de que as pessoas não falam português porque não se esforçam”. “Não é verdade”, contrapõe.
“O problema da língua é a maior dificuldade de integração.
Há muito esta ideia de que as pessoas não falam português porque não se esforçam. Não é verdade”
Shiv Kumar Singh, além de presidente da Associação Casa da Índia, é diretor do Centro de Estudos Indianos e professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Aprendeu português na Índia, antes de ganhar uma bolsa do Instituto Camões para vir para Portugal estudar. Enquanto alguém que se dedica a investigar e ensinar línguas, garante que não é por falta de vontade que os imigrantes indianos não aprendem a falar português.
“Se eu disser hoje que vamos ter aulas de português para 100 pessoas, amanhã vão chegar aqui 300 pessoas”, assegura. “O governo não pode dizer que os imigrantes não estão a querer aprender português. Há muita, muita, muita procura. Mas não há vagas, nem nas escolas, nem no IFP, nem nos outros sítios.”
“Quem trabalha no restaurante, no hotel, na agricultura, consegue adquirir aquele português que é necessário para poder trabalhar, para desempenhar as suas funções lá no terreno”, diz. “Mas e quando estão no hospital? Quando estão nas Finanças? Quando estão na Segurança Social? Quando estão com a polícia?”, questiona.
“Temos de contratar mais professores, mais mediadores linguísticos”, sustenta Shiv Kumar Singh. “Temos de ter uma política e um programa diferentes.”
“As escolas têm um papel central na integração dos seus alunos, mas sabemos que não há recursos. Não têm professores suficientes sequer, quanto mais outro tipo de mecanismos”, reconhece a investigadora Inês Lourenço.
Concorda que há “necessidade de mudar a forma como se ensina a língua”. Defende que é preciso “arranjar sistemas que permitam que as pessoas, de facto, consigam depois praticar a língua”.
Porque, além da escassez de recursos, há outros constrangimentos que impedem a maioria dos novos migrantes de aprenderem português.
“Para aprender qualquer coisa, nós precisamos de alguma paz e algum conforto”, sublinha o presidente da Casa da Índia. “Se o meu trabalho é sazonal, não é fixo, como é que eu vou fixar-me durante três ou quatro meses em Lisboa para ter aulas todas seguidas? Se não trabalhar um dia, não tenho dinheiro suficiente para comer, para viver, sobreviver.”
Horacio Villalobos/Corbis via Getty Images
IV
Ver o imigrante trabalhador e não o imigrante pessoa
A sazonalidade do emprego que encontram em Portugal é um dos grandes dramas dos imigrantes do subcontinente indiano chegados ao país nesta nova vaga.
“Os trabalhos não são fixos: um mês no Porto, outro mês em Coimbra, outro mês em Odemira, outro mês não há nada - porque muita gente do subcontinente indiano está em empregos na agricultura ou no turismo”, expõe o presidente da Casa da Índia.
“Vêm trabalhar em condições bastante precárias. Sabemos que, muitas vezes, são angariados nos países de origem, atraídos para estes empregos que depois não correspondem às expectativas, porque são sazonais”, sustenta a antropóloga Inês Lourenço.
Como explica a especialista, o primeiro problema tem, não raras vezes, raízes logo no modo como os imigrantes chegam ao país. Há intermediários que facilitam a vinda destas pessoas para a Europa. Um negócio organizado. E um serviço que sai caro a quem fica na mão destas redes.
“Para vir para Portugal, muita gente, antes de chegar, já está endividada.
Têm constantemente esta preocupação de pagar a dívida, e, depois, de tomar conta da família que deixaram na Índia”
“Sabemos que muita gente do subcontinente indiano, para vir para Portugal, antes de chegar, já está endividada”, admite Shiv Kumar Singh. “Têm constantemente esta preocupação de pagar a dívida, e, depois, também, de tomar conta da família que deixaram na Índia, no Paquistão, no Bangladesh, no Nepal,..”
Inês Lourenço refere que, quando chegam a Portugal, estes migrantes ficam “completamente desamparados”, em situações “muito dramáticas”, quer em termos alimentares, quer de habitação.
“Não só para os migrantes, mas mesmo para os nacionais, a habitação tem sido um grande problema”, constata o presidente da Casa da Índia. “Da maneira que as rendas estão a subir, quem ganha o salário mínimo tem uma vida muito difícil em cidades como Lisboa ou o Porto, mesmo nos arredores. E isto torna-se muito mais complicado para os imigrantes.”
“Se ganham um salário mínimo, há aqueles escândalos que nós temos visto de numa casa estarem a viver 20 pessoas ou estarem a viver num cubículo de dois metros”, afirma, frisando que nenhum imigrante deseja viver nestas condições. “Ninguém quer isto.”
A Unidade Nacional de Estrangeiros e Fronteiras da Polícia de Segurança Pública (PSP) fala em “largas dezenas de milhares” de imigrantes ilegalmente no país, muito por via destas redes que funcionam como facilitadoras deste tipo de imigração.
A investigadora Inês Lourenço declara que as situações em que se encontram alguns destes imigrantes depende “não só de todas estas redes ilegais que regulam estes trajetos, como, muitas vezes, dos próprios patrões, que não oferecem o mínimo aos seus trabalhadores”.
“Às vezes, há uma falta de vontade do poder local, mas também dos empregadores, de fornecerem essas condições aos trabalhadores que são essenciais”, aponta.
“Temos muitas vezes olhado para este perfil utilitário. Não é o imigrante pessoa, é o imigrante trabalhador que estamos a acolher. E não é. É sempre uma pessoa que estamos a acolher”, afirma o diretor científico do Observatório das Migrações, Pedro Góis, que pede responsabilização patronal e clareza nos procedimentos.
“Se o dono de uma obra contratar subempreiteiros que contratam também subempreiteiros que contratam subempreiteiros, quem é o responsável?”, questiona. “A fiscalização tem de ser construída de forma que a cadeia de responsabilidade funcione quando algo corre mal - sendo que, em última análise, é o Estado que acolhe os migrantes o responsável”, defende.
Esta fiscalização, argumenta, cabe às entidades do Estado - “a Autoridade para as Condições do Trabalho, a Segurança Social, a autoridade fiscal” -, mas também a “todos nós”. “Se virmos alguma situação que mereça ser denunciada, temos a obrigação de denunciar.”
“Olhamos para o perfil utilitário. Não é o imigrante pessoa, é o imigrante trabalhador que estamos a acolher.
E não é. É sempre uma pessoa”
Para Pedro Góis, o país tem também de ser “ágil” na mobilização dos canais de migração regular. “Temos de usar a tecnologia a nosso favor. E temos de estabelecer novas redes diplomáticas”.
Portugal e a Índia já têm acordos assinados para o recrutamento e a mobilidade regular entre os dois países, mas certo é que os imigrantes indianos continuam a estar entre os que mais são vítimas de esquemas de imigração ilegal.
“Existe este instrumento entre os dois governos. A assinatura já faz quatro ou cinco anos. Mas nenhuma pessoa veio para Portugal ao abrigo deste instrumento”, constata o presidente da Casa da Índia.
Ao contrário do que está a acontecer, por exemplo, entre a Índia e o Japão, depois de terem sido assinados protocolos semelhantes para a mobilidade de trabalhadores indianos.
“Isto está a funcionar muito bem com o Japão. Esta ideia de, antes de convidar um trabalhador da Índia, o empregador é que tem que dar, pelo menos, um contrato fixo, formação, residência, aulas da nova língua e também seguro de saúde.”
“As coisas já existem”, frisa. Mas, em Portugal, “este instrumento está parado”.
V
A falha do sistema
Apesar de estar há três anos em Portugal, a trabalhar para uma empresa portuguesa e a fazer descontos, Rajinder Kumar ainda não tem título de residência.
Conta que, passados dois anos em Portugal, a AIMA lhe enviou um e-mail a dizer que afinal tinha o registo criminal em falta. Tratou de fazer o pedido na Índia e entregar o documento. Desde então, passou-se quase mais um ano. “Tenho de esperar”, afirma, resignado.
E a espera continua. Aqui, sentado no muro do pequeno largo da Calçada do Monte, na Graça. A olhar para o telemóvel. A ver fotografias, mais uma vez. Mas agora da família, que deixou para trás. A mulher e os dois filhos, uma rapariga de 20 anos e um rapaz de 18. O plano de Rajinder é trazê-los aos três para Portugal.
“Primeiro, tenho de ter autorização de residência. Depois, quando tiver o papel, o documento, vem para cá a família. Toda: a esposa, o filho, a filha. E depois ficam aqui”, diz.
O presidente da Casa da Índia, Shiv Kumar Singh, aponta os estudos que mostram que “as pessoas que vivem com a família têm uma tendência de cometer menos crime, de criar menos desordem na sociedade”. Considera, por isso, o reagrupamento familiar um instrumento fundamental para a integração dos imigrantes no país.
As regras para o reagrupamento familiar foram um dos temas mais polémicos das recentes alterações que o Governo português quis levar a cabo (sob a justificação de que o país tinha sido deixado com as “portas escancaradas” à imigração) na lei de estrangeiros - de tal forma que obrigou a um recuo do Executivo, em particular quanto à possibilidade do reagrupamento do cônjuge.
Todavia, mesmo quando todas as exigências estão reunidas, há imigrantes que ficam anos à espera de poder iniciar o processo de reagrupamento familiar, simplesmente porque não conseguem vaga e porque há demasiados processos pendentes.
“Essa é uma das grandes vantagens que o Governo podia dar para facilitar a quem já cá está e tem condições para suportar economicamente a sua família”, frisa Shiv Kumar Singh.
Vantagens para os cidadãos imigrantes e para a economia do país, já que estes trabalhadores - e, particularmente, os indianos, - são um ativo de peso para a economia portuguesa. A comunidade indiana é a segunda que mais contribuições para a Segurança Social fez em 2024.
“Estes trabalhadores são essenciais para a economia do país e fazem descontos para a Segurança Social, contribuindo precisamente para o tecido social e económico português”, corrobora a investigadora Inês Lourenço.
“A contribuição dos imigrantes nos últimos anos foi imensa. No ano passado, foi quase 4 mil milhões de euros. Não sei quantos outros setores há que estejam a dar o mesmo nível de receita”, afirma o presidente da Casa da Índia. “Economicamente falando, se há um setor que está a contribuir imenso, então porquê destruí-lo?”, questiona.
Shiv Kumar Singh nota que Portugal precisa de “alguém que faça aqueles trabalhos que, se os imigrantes não vierem, os nacionais terão de fazer”: na agricultura, na limpeza, na floresta, na construção,.... “Para o ano, também, por causa do PRR, temos de acabar vários projetos, se não vamos perder imenso dinheiro, que vai fazer muita diferença ao nosso país, às nossas infraestruturas, às nossas escolas, tudo”, argumenta.
“A Índia é um país jovem. Nos próximos 15 a 20 anos, os países onde há taxa de natalidade baixa, problemas de envelhecimento, vão ter falta de mão-de-obra. Se Portugal quiser aproveitar isto, muito bem. Se não quiser, outros países vão aproveitar, de certeza”, avisa. “Se, por causa de alguns ganhos políticos a curto prazo, alguém está a pensar em fechar as portas, está a estragar muito o futuro do país.”
“Se, por alguns ganhos políticos a curto prazo, alguém está a pensar em fechar as portas, está a estragar muito o futuro do país”
“Não haja dúvidas: Portugal continua a necessitar de muitos migrantes. E, portanto, vão ter de continuar a vir”, corrobora o diretor do Observatório das Migrações.
Ainda assim, o Governo insiste que é preciso reduzir o fluxo de imigrantes a chegar a Portugal - sobretudo os menos qualificados (o que, de acordo com o diretor do Observatório das Migrações, é apanágio tanto das leis nacionais como das diretivas europeias). Em maio deste ano, o Executivo informava que, dos 18 mil estrangeiros que estavam a ser notificados pela AIMA para abandonarem o país, 75% eram originários do subcontinente indiano.
Rajinder é o exemplo vivo de que muitas destas pessoas, tidas como ilegais no país, estão indocumentadas “devido aos atrasos da AIMA”, como aponta a especialista Inês Lourenço. “Submeteram os seus processos e estão anos e anos à espera.”
A investigadora põe a tónica do tema da imigração ilegal na “ineficiência do sistema”, que, avisa, é “um problema sério”.
““Esse é o problema: o mau funcionamento das instituições. O sistema falha em acolher os imigrantes e coloca-os numa posição precária - ao ponto de serem mesmo convidados a serem deportados”
“Acho que esse é o problema: o mau funcionamento das instituições. O sistema falha redondamente em acolher os imigrantes e coloca-os numa posição precária - ao ponto de serem mesmo convidados a serem deportados do país e também detidos”, sustenta.
Estes cidadãos, afirma, estão agora numa situação de “pânico generalizado”, perante as recentes mudanças das regras imigratórias.
Shiv Kumar Singh é crítico do modo como o qual Executivo pôs fim ao regime de manifestação de interesse, que permitia aos estrangeiros entrarem legalmente em Portugal como turistas e depois, já no país, regularizarem-se como imigrantes, mediante uma oferta de trabalho
“Foi talvez um dos decretos de lei, promulgado pelo Presidente Marcelo, mais rápidos de Montenegro”, nota o presidente da Casa da Índia. “O Governo quer destacar muito a perspectiva regulada, mas também temos de ter a perspectiva humana.”
“Dizer: “A partir de amanhã, não quero que nenhum imigrante entre no meu país, vou fechar [as fronteiras]”. Isto acontece nas ditaduras"
“Eu concordo com esta ideia de que a gente tem que entrar com o visto legal no país. Mas e quem já cá está? Quem para estar cá já pagou milhares de euros?”, questiona. “Agora, esta pessoa fica duplamente castigada: pelas autoridades portuguesas, mas também pelos intermediários.”
"Sabemos que o instrumento ou a política da manifestação de interesse não foi tão bem implementada como o país queria. Mas há maneiras de resolver isto”, afirma. “Dizer: “A partir de amanhã, não quero que nenhum imigrante entre no meu país, vou fechar [as fronteiras]”. Isto acontece nas ditaduras. Nas democracias, nós temos que dar tempo.”
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VI
Jogo de perceções
O discurso do atual Executivo sobre o “caos imigratório” em que o governo antecessor deixara o país vai ao encontro das perceções - estatisticamente incorretas - da sociedade portuguesa quanto ao volume de imigrantes atualmente em Portugal.
Segundo o Barómetro da Imigração, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, a “sociedade portuguesa sobrestima a quantidade de estrangeiros em Portugal”. No que diz respeito à comunidade do subcontinente indiano, em particular, 63% dos portugueses inquiridos defendem que devia haver menos imigrantes destas origens. Uma opinião não raras vezes agregada a uma associação entre imigração e aumento de criminalidade - desmentida pelos dados oficiais (sendo que, pelo contrário, são os relatos de crimes contra imigrantes que têm vindo a aumentar).
Este é um fenómeno que o diretor do Observatório das Migrações atribui, em parte, à “estratificação da sociedade, que se mantém”.
“A nossa sociedade não é feita de gente de classe alta, é feita, sobretudo, de gente que resiste e que tenta sobreviver no dia-a-dia e que, em alguns momentos, tenderá a sentir-se ameaçada por quem chega e, portanto, reage hostilizando um pouco, ou, pelo menos, criando uma percepção negativa sobre quem chega e parece mais estranho”, sustenta Pedro Góis.
A investigadora Inês Lourenço refere que os casos de discriminação “sempre existiram”, mas que aquilo que ouve da comunidade é que “antes acontecia excepcionalmente, e agora acontece numa base quotidiana”, o que classifica como “muito assustador”.
“Trabalho há mais de 25 anos com esta comunidade e, na verdade, a comunidade sul-asiática era daquelas que estava mais resguardada dos discursos de ódio e de racismo”, refere. Agora, relata, “vivem numa sensação de tristeza, de humilhação constante”.
“Ouvem “volta para a tua terra” e coisas muito piores”, lamenta a especialista, que fala numa “onda de discursos de ódio nunca vista” e até em “ataques a templos, a congregações religiosas”.
“Tornou-se profundamente dramático para a vida destas pessoas, ao ponto de dizerem: “Eu, antes, gostava de viver em Portugal e agora só me dá vontade de ir embora”.”
“Não sei porque é que estão a pedir que vamos embora.
Vivemos aqui porque nos deram autorização para vir”
Se há imigrantes indianos que se sentem assim, não é o caso de Rajinder Kumar. Diz que uma das coisas que gosta em Portugal é que toda a gente é tratada com “respeito”. Nega alguma vez ter sido maltratado no país por ser indiano. “Nunca senti isso”, assegura. Mas diz também ter noção de que há agora mais gente a olhar os imigrantes de lado. E sabe que há quem defenda que devem deixar o país.
“Não sei porque é que estão a pedir que vamos embora”, afirma. “Foram os portugueses que nos permitiram vir para aqui. É por isso que nós estamos cá”, argumenta. “Vivemos aqui porque nos deram autorização para vir.”
Quanto à associação dos imigrantes à criminalidade ou àquilo que no discurso das forças políticas mais extremadas é erguido como bandeira e chamado de “subsidiodependência”, Rajinder desmonta a ideia, frisando que ele, como todos aqueles com quem convive, estão cá para trabalhar.
“Eu, todo o dia, tenho trabalho. Todos os dias. Todos os meses. Toda a semana, trabalho. Até sexta-feira, trabalho. Há outros meses em que, ao sábado, também trabalho. Um dia em que fico em casa, tenho de lavar a roupa, limpar o quarto, tenho pouco tempo para descansar, tenho de cozinhar. É muito trabalho-casa. Não tenho muitas conversas sobre o que, em Portugal, diz um ou outro político. Eu trabalho.”
Também Kirti Unadkat assegura que nunca sentiu qualquer tipo de discriminação por ser imigrante. “Graças a Deus, não. Nunca.”
“Tenho muitos amigos cá que são como família. Os portugueses sempre nos trataram muito bem.” Os clientes na loja da Damaia, afirma, são “todos portugueses”. “Nós temos uma boa relação com todos. Todos gostam muito de nós. E nós também gostamos deles.”
“Quase todos são pessoas idosas e o meu marido gosta muito de ajudá-los. A enviar mensagens, a fazer isto e aquilo,... Ele faz tudo. Porque os filhos não vivem com eles e depois eles, coitadinhos, não sabem mexer no telemóvel. Então eles vêm aqui e o meu marido ajuda”, diz.
Kirti Unadkat e o marido, na loja de telemóveis que têm na Damaia
Mas é crítica dos imigrantes que vêm ilegalmente para o país. Faz uma distinção entre os que, como ela, chegaram antes e se integraram plenamente e aqueles que considera “não respeitarem” as regras e os costumes portugueses. Afirma que quem sofre represálias, se calhar, “é porque se porta mal”.
A oposição do “imigrante bom” contra o “imigrante mau” é uma problemática que tem sido sociologicamente estudada. Uma lógica discursiva que se foca nos imigrantes indocumentados em oposição aos estabelecidos regularmente, e que, vários autores apontam, fomenta a dualização e a competição sociocultural e económica entre migrantes.
Os “bons” imigrantes são tidos como aqueles que são mais próximos, mais parecidos, com a população dominante e, como tal, também estes procuram distanciar-se dos “maus” imigrantes. O crescimento recente de partidos de extrema-direita e anti-imigração, em Portugal, na Europa e pelo mundo, tem sido, de resto, feito também com recurso ao apoio de uma base imigrante que procura identificar-se mais com a população dominante, em oposição à população imigrante vista negativamente.
“O diretor da polícia foi questionado sobre qual a percentagem de criminalidade na comunidade indiana. É tão insignificante que nem sequer tinha dados”
Em relação à associação entre imigração e criminalidade, o presidente da Casa da Índia insiste que se revelou um meio fácil para obter “ganhos políticos”. “Politicamente falando, isto é uma coisa que está a dar resultado. Está a dar vantagem a alguns partidos e continuam a culpar os imigrantes por tudo.”
“Não há mal nenhum em dar opiniões. Mas temos de pensar logicamente. O diretor da polícia foi questionado sobre qual a percentagem de criminalidade na comunidade indiana. E é tão baixa ou tão insignificante que nem sequer tinha dados”, nota Shiv Kumar Singh.
“Nem todos os imigrantes são santos”, ressalva. “Claro que vão aparecer algumas pessoas que nem sempre respeitam as normas sociais ou legais. Em nome da comunidade, posso dizer que somos a favor do respeito das leis locais. Se alguém não está a respeitá-las, a polícia ou o tribunal devem dar-lhe as consequências que merece.”
Uma nação de imigrantes
Entre 1962 e 1974 - em pleno regime ditatorial do Estado Novo - houve uma média de 62 mil portugueses, por ano, a emigrar para a França. À sociedade francesa da altura, estes cidadãos - emigrantes em Portugal, mas imigrantes em território francês - pareciam “bastante estranhos”.
Eram “homens de bigode, rurais” e “mulheres de lenço na cabeça”. Muito diferentes dos franceses de então e daquilo que estavam habituados a ver. O paralelo é feito pelo diretor do Observatório das Migrações, Pedro Góis, que lembra que, mesmo com todas estas diferenças, os emigrantes portugueses em França conseguiram “fazer o seu caminho” naquele país. “Isso dá-me esperança de que outros também o farão” em Portugal, confidencia.
As últimas estimativas das Nações Unidas, em 2024, apontam para a atual existência de 1,8 milhões de emigrantes portugueses espalhados pelo mundo. “Não há nenhuma família que não tenha uma ou mais pessoas a trabalhar no estrangeiro”, constata o presidente da Casa da Índia, que espera, por isso, “compreensão” por parte da população portuguesa em relação aos imigrantes que chegam ao seu país.
“Claro que os imigrantes têm de se integrar na sociedade que os acolhe, mas também temos de preparar a sociedade. Também temos de preparar os nossos cidadãos nacionais para terem um pouco de conhecimento sobre as pessoas que estão à sua volta, que estão a trabalhar consigo”, defende. “Temos de fazer algum investimento na sociedade local, para que haja uma compreensão pelo outro.”
O diretor do Observatório das Migrações defende que é preciso deixar claro que “os imigrantes “estão a ajudar-nos”. “Portanto, têm de merecer o nosso agradecimento.”
“Não estão aqui nem a roubar empregos, nem a roubar subsídios, nem a cometer crimes. Estão a ajudar o país a crescer. E, graças a eles, tivemos crescimento nos últimos anos”, sustenta.
Pedro Góis acredita que, se houver esta compreensão, a perceção sobre imigração possa mudar. Mas como se mudam as perceções, para fazer ver esta realidade? O diretor do Observatório das Migrações admite que pode e dever ser produzido “mais e melhor” trabalho na academia, que sirva de base a esta reflexão. Que também os média têm de ser mais eficazes a passar a mensagem. E que novos meios, como as redes sociais, têm de ser “disciplinados com fact-checking”.
“É possível fazermos tudo isto ao mesmo tempo? Acho que não”, confessa. “Acho que vamos ter que conviver com esta utopia e distopia no que gostaríamos que fossem as migrações.”
“Os imigrantes têm de merecer o nosso agradecimento.
Não estão aqui a roubar empregos, nem a roubar subsídios, nem a cometer crimes. Estão a ajudar o país a crescer”
“É muito difícil, neste momento, encontrar soluções”, admite também Inês Lourenço, A investigadora acredita que “só com a Educação se consegue trazer à luz a realidade” e “apagar mentiras” difundidas sobre “pessoas que só querem vir para Portugal para trabalhar” e “terem uma vida melhor”. “Porque têm o direito de ter uma vida melhor”, sublinha.
Defende que o esforço para a integração dos migrantes deve passar “não só, obviamente, pelas instituições governamentais”, mas também “pelos esforços das próprias comunidades” - e aponta “bons exemplos” que poderiam ser replicados, como a instrução dada aos funcionários das instituições que recebem migrantes no Fundão ou no Centro de Saúde da Baixa, em Lisboa. “Nos vários serviços públicos do Governo, era essencial este tipo de formação.”
A investigadora frisa: “A identidade portuguesa foi, é e espero que continue a ser múltipla e complexa, fruto de todos os cruzamentos históricos e dos contemporâneos também”. Uma identidade que, aponta o presidente da Casa da Índia, vai ao encontro da da população indiana. “É uma comunidade habituada à diversidade, ao multiculturalismo.” Os mesmos valores que, nota, estão por traz da União Europeia, em que Portugal se insere: “o respeito pela diversidade, pelo multiculturalismo, pelos direitos humanos. Isso tudo este povo já tem.”
“A identidade portuguesa foi, é e espero que continue a ser múltipla e complexa, fruto de todos os cruzamentos históricos e dos contemporâneos também"
E, por isso mesmo, este povo ama Portugal e aqui planeia ficar. No caso de Kirti Unadkat, mesmo após a reforma, não está nos planos para o futuro um regresso à Índia.
“Eu não quero ir. Adoro Portugal. Nós vamos ficar aqui”, garante. E se as saudades da Índia baterem? “Hoje em dia, com telemóvel, liga-se e pronto.” E não é que está no sítio certo para isso?
Quem também acredita estar no lugar certo é Rajinder Kumar. Assegura que é a trabalhar em Portugal que quer ficar, quando conseguir trazer a família da Índia para junto de si. Quer que possam todos ter nacionalidade portuguesa, um dia.
“Eu gosto da Índia, mas eu gosto mais de Portugal. Gosto muito de Portugal”, afirma. Do clima “agradável”. Também da comida - o prato preferido é “bitoque”. Mas há uma outra coisa em Portugal de que Rajinder gosta mais do que todas essas: “Aqui cada um pode pensar livremente”. E, pelo menos, por enquanto, a certeza de Rajinder não é abalada.






