ESPECIAL: FICA NA MINHA TERRA
De 'irmão' para 'irmão'
A Comunidade Brasileira em Portugal
É a comunidade imigrante mais representativa no país: há 484.596 brasileiros residentes em Portugal, de acordo com o último relatório da Agência para a Integração, Migrações e Asilo. É o mesmo que dizer 31,4% de todos os residentes estrangeiros. Vêm daquele a que chamam “país-irmão”. Porém, como em qualquer relação fraterna, também esta não existe sem problemas. Há a partilha de uma língua e de uma História em comum. Há familiaridade e afeto. Mas também tensões e contradições, potenciadas por um passado colonial. Estes são os rostos de quem atravessou o Atlântico e se fixou em Portugal.

I
Fugir a milagres
Foi "por milagre" que Ricardo Magalhães diz ter escapado. Se tivesse ido almoçar com o amigo com quem habitualmente almoçava, no local onde por costume se encontravam, poderia já não estar vivo. Naquele dia, o dia do tiroteio, não pôde ir. E escapou. Não muito depois, houve um sequestro na clínica médica onde a mulher trabalhava. Também ela estava no lugar certo à hora certa e saiu ilesa. Não quiseram testar a sorte uma terceira vez. Pegaram nas malas, na filha de 6 anos, na sogra e nos dois cachorrinhos da família. E mudaram de país.
Ricardo está sentado, por trás do balcão, na expectativa de quem virá. Clientes, espera. Os clientes da clínica de estética que montou em Portugal. O espaço é alvo, límpido. Quem aqui entra perde-se no branco que se encontra em todos os cantos - desde as máquinas com que são feitos os tratamentos às marquesas onde se deita quem deles vem usufruir. Tudo transmite uma sensação de harmonia, paz, segurança. Mas os braços de Ricardo estão cruzados ao peito. Na defensiva.
Ainda hoje, já em Portugal - o sétimo país mais seguro do mundo, de acordo com o Índice Global da Paz de 2024 -, Ricardo admite que o preocupa ler as notícias que dão conta da presença do grupo de crime organizado brasileiro ‘PCC’ (‘Primeiro Comando da Capital’) em terras lusas. São várias as motivações dos brasileiros para imigrarem - da busca de emprego à formação superior, além, claro, do reagrupamento familiar -, mas a segurança é das razões consistentemente mais referidas.
Ricardo vivia há uma década em Salvador da Bahia, onde trabalhava como engenheiro, quando resolveu deixar o Brasil. Chegou a Portugal em junho de 2023.
"Eu falo para todo o mundo: adaptei-me a partir do momento em que pisei fora do avião", diz. Olha para esta mudança como um "retorno às origens". Emociona-se quando recorda os doces típicos que a avó - de raízes portuguesas – fazia na sua infância e que agora reencontrou em Portugal. O arroz-doce, o pastel de nata, o travesseiro de Sintra (o favorito). "A avó fazia a mesma massa, o mesmo recheio, mas enrolava-o de outra forma", conta.
Aos 49 anos, num novo país, numa nova cidade, Ricardo teve de se reinventar. Incapaz de exercer na área profissional em que se formou, decidiu apostar num negócio de franchising. Abriu esta loja de uma cadeia de clínicas de cuidados estéticos - confiando que a experiência da mulher como especialista em endocrinologia fosse útil. Em paralelo, trabalha para as plataformas de TVDE.
Chegar, virar a vida e criar negócios. O exemplo de Ricardo está longe de ser caso único. Os brasileiros são das comunidades imigrantes mais empreendedoras no país – mais de 26% dos empregadores estrangeiros em Portugal eram brasileiros, segundo dados do Governo de 2021.
"Acho que isso está um pouco no sangue do brasileiro, o empreendedorismo", comenta Ricardo. "Vê-se independentemente do nível social, da idade, da região do país. Está muito intrínseco, é muito endógeno no brasileiro", a "realidade económica do Brasil nos leva a empreender (...), a procurar novas formas de ter uma melhor condição", explica.
Processos que obrigam, contudo, a muito trabalho burocrático, a começar pela legalização no país – um pesadelo para os muitos imigrantes que têm chegado recentemente. Em 2024, a população estrangeira em Portugal cresceu 18.3% para um total de 1.543.697 imigrantes residentes (dos quais 31,4% vindos do Brasil), segundo o mais recente relatório da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) - acompanhando a tendência dos países da OCDE, onde, no último ano, se bateu um recorde histórico de imigração permanente.

Mas a chegada de população brasileira ao país é tudo menos um fenómeno recente. Ana Paula Costa, que lidera a Casa do Brasil de Lisboa, distingue quatro grandes vagas de imigração para Portugal, desde o 25 de Abril de 1974. A primeira, nos anos 80, de uma população mais altamente qualificada, fugida ou exilada da ditadura brasileira. Depois, uma segunda, nos anos 90, de uma classe mais trabalhadora, que veio para trabalhar em setores específicos dos serviços e das obras públicas, na sequência da integração de Portugal na União Europeia, em 1986, e da chegada dos fundos para infraestruturas.
Houve ainda uma terceira vaga: "um ‘mix’ entre os trabalhadores e as pessoas de uma classe mais alta". E, atualmente, sobretudo a partir de 2016, "uma quarta vaga de imigração brasileira, caracterizada por não ter um perfil muito marcado".
"Há muitos brasileiros nas universidades, na restauração, nas obras, mas também a investir, a trabalhar em tecnologias, é bastante diversificado."

II
"Os canais de imigração não funcionam bem, é uma falha do Estado"
Na sede da Casa do Brasil de Lisboa, um edifício antigo na Rua Luz Soriano, no coração do Bairro Alto, as paredes enchem-se de cartazes a anunciar as próximas sessões dirigidas à comunidade. "Acordo de Segurança Social entre Portugal e Brasil", "Entrevistas de Emprego", "Sistema de Ensino Superior", lê-se nas ‘gordas’ dos papéis coloridos por cima dos sofás onde se sentam cidadãos brasileiros, que esperam para serem atendidos.
Ana Paula Costa é bastante crítica quanto às falhas da administração pública em Portugal. Com apenas 31 anos, a cientista política e investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais acaba de tornar-se na mais jovem presidente da história da instituição, fundada há mais de três décadas. Veio para Portugal, da faculdade em Viçosa, Minas Gerais, para estudar na Universidade de Coimbra. Daí fez a transição para Lisboa, para tirar o mestrado na Universidade Nova. Continuou pelo doutoramento e acabou por tornar-se investigadora na instituição. Hoje, além de estudar o tema das políticas públicas em áreas como as migrações, procura, na Casa do Brasil, facilitar a integração dos brasileiros, ajudando-os a navegar pelos mares da máquina burocrática e das políticas de imigração portuguesas.
"Uma política de imigração eficaz é uma política comprometida com os direitos humanos"
Diz que o Estado não consegue dar resposta aos pedidos de renovação de vistos, por falta de funcionários e de recursos – um problema agravado pelo fim do regime da "manifestação de interesse" (hipótese, criada durante o governo de maioria socialista, que dispensava a existência de um visto prévio à entrada no país, se os migrantes viessem trabalhar). Após a extinção da medida, em junho de 2024, o fluxo de entradas de estrangeiros caiu 59%. Desde então, foi aprovada uma resposta para os cidadãos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Ainda assim, sublinha Ana Paula Costa, o problema está longe de ser resolvido.
"É muito conveniente atacar uma via de regularização muito importante para os trabalhadores imigrantes, como é a manifestação de interesse, sem tratar dos canais de imigração regulares, que são os consulados que emitem os vistos para as pessoas. Esses canais de imigração não funcionam bem", declara. "É preciso falar também dessa falha do Estado".
O regime terminou, com o atual Executivo, sob a justificação de que as portas do país estavam "escancaradas" à imigração. A presidente da Casa do Brasil de Lisboa contesta.
"A imigração não é uma questão de segurança. Crime é outra categoria e qualquer pessoa de qualquer nacionalidade pode cometer um crime"
"Portugal não tem imigrantes a mais. Na verdade, o que se aponta nos estudos é que se precisa de mão de obra. Alguns setores, se não tivessem trabalho imigrante, não sobreviveriam", sustenta.
Frisa que quem fazia a manifestação de interesse eram pessoas que iam trabalhar e contribuir para a Segurança Social. "Não tinham nenhum problema de crime. E é importante tirar esse mito, porque em toda a renovação de autorização de residência é preciso apresentar o registo criminal."
"Se não houver uma tentativa de criar um mecanismo de regularização (...), vai piorar", alerta Ana Paula Costa. "Os empregadores que têm más intenções e cometem crimes de explorar mão de obra vão aproveitar-se disso. E as redes de tráfico também. Acho que o fim da manifestação de interesse acarreta muitos problemas que não foram muito bem geridos."
"Qualquer coisa fracassou na nossa democracia, seja de Portugal, seja dos países da União Europeia - que tem como perspetiva ser bastião da liberdade, da solidariedade, da segurança - se tratar dessa forma os imigrantes", declara.
"Influenciar" migrações: um mercado
É por o processo de legalização em Portugal ser tão complexo que muitos migrantes, como Ricardo, recorrem a outro tipo de suporte para prepararem a chegada ao país. Falamos do mercado dos influencers – uma atividade já bem rentável para vários outros brasileiros que usam as redes sociais para atrair concidadãos para Portugal.
Marcela França, investigadora na Universidade Católica Portuguesa, estudou este fenómeno da influência das redes sociais na vinda de brasileiros para o território português. "O brasileiro consome muito redes sociais. É das nacionalidades que mais horas passa por dia nas redes", aponta. Não é por isso de estranhar, assinala, que os vídeos de outros brasileiros – no YouTube, no Instagram ou no TikToK - a promover a imigração e o estilo de vida que levam em Portugal caiam no radar de muitos e se tornem decisivos no processo de mudança para o país.
A investigadora distingue tipos distintos de influencers da migração, com conteúdo personalizado para os diferentes tipos de imigrantes brasileiros. "Uma pessoa com uma classe social mais baixa, ela vem para tentar uma vida economicamente melhor. E aí, há aqueles que fazem vídeos, por exemplo, de: "Olha o que eu consigo comprar no supermercado em Portugal com 10 euros!"
Ao mesmo tempo, os imigrantes de classe média alta e alta vêm, geralmente, à procura de outra "qualidade de vida e de segurança". Para tal, há influencers especializados, que mostram quais os melhores imóveis, nos bairros mais endinheirados e tidos como mais seguros das cidades portuguesas.
Ricardo Magalhães conta o papel que teve uma conhecida influencer brasileira na sua vinda para o país. Estabelecida em Cascais, fornece - aos muitos e muitos seguidores que tem no Instagram – dicas sobre a mudança para Portugal e serviços de apoio pagos. Foi ela quem guiou Ricardo na compra da casa onde hoje a família vive, em Carnaxide, e no processo de abertura do franchising.

Ricardo Magalhães consultou uma influencer durante o processo de mudança para Portugal
No caso de Ricardo, as coisas estão "a correr bem". O negócio está a andar e a família parece satisfeita. A filha está a integrar-se – frequenta o 1.º ano do ensino básico - na escola pública portuguesa. Ricardo espera que ela prossiga os estudos, faça a faculdade e comece a trabalhar em Portugal. Ele próprio está a pensar retomar o doutoramento em planeamento energético e análise de dados, que deixou para trás no Brasil. Mas nem sempre as histórias de migração marcadas pelo influencing têm um final tão feliz.
Ainda antes da transição para a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras estava já a investigar dezenas destes influencers, por alegadamente terem cometido crimes de auxílio à imigração ilegal, aliciando os brasileiros na imigração e depois vendendo serviços de assessoria e procuradoria para os quais não estavam legalmente habilitados.
"Tem de se escolher bem quem seguir, porque há muita coisa errada nesse mundo", admite Ricardo Magalhães. "Não são todos os [influencers] que são sérios."
"Tem esses influenciadores que vendem para essas pessoas que tudo é barato, que é tudo muito fácil: "Ah, vem aqui que eu ajudo" e "as dificuldades são omitidas", alerta Marcela França.
A investigadora refere como há quem "venda tudo, compre a passagem" e chegue a Portugal "praticamente liso". "Imaginam que rapidamente conseguirão um emprego e fazer a sua vida", mas, muitas vezes, lamenta, "resulta mal". "A gente sabe de brasileiros que estão na rua ou que precisam de apoio alimentar por parte de instituições."
"Vendiam Portugal como se fosse a Disney.
Nenhum país é assim.
Nenhum país é perfeito"
Os brasileiros são quem mais adere ao Apoio ao Retorno Voluntário, um programa desenvolvido pelo Governo português e a Organização Internacional para as Migrações (OIM) para ajudar os migrantes que querem regressar ao país de origem, mas não têm capacidade financeira para fazê-lo.
Em 2024, houve 161 imigrantes beneficiários do programa, 149 deles de nacionalidade brasileira. Marcela França acredita que os elevados números estarão, em parte, relacionados com esta ilusão da realidade dos imigrantes em Portugal que é “vendida” na internet e que faz com que muitos brasileiros se mudem sem o planeamento adequado.
Dados da OIM, divulgados em 2023, apontavam que pelo menos 10% dos brasileiros que moravam em Portugal na altura enfrentavam sérias dificuldades financeiras. Ainda assim, neste último ano, os pedidos de regresso voluntário começaram a regredir.

III
Trabalhar em Portugal: um salto de fé
Maria Eunice, de 60 anos, nunca tinha andado de avião. "Era um sonho." Realizou-o quando, depois da pesada perda de vários familiares, quis mudar o cenário do filme da sua vida. "Eu me encontrei só", desabafa. "Queria viver uma vida diferente e tomei essa decisão radical."
Deu um salto de fé e, da pequena cidade de Morrinhos, no estado brasileiro de Góias, veio para Fátima, em Portugal. Nos primeiros tempos, ficou em casa de amigos. Travou, entretanto, amizade com uma freira, conhecida por “ajudar muitos brasileiros”. Foi aconselhada a mudar-se para a Grande Lisboa, onde seria mais fácil encontrar trabalho. É, de resto, no distrito da capital que se concentra grande parte dos imigrantes em Portugal – mais de 600 mil, de acordo com os últimos dados da AIMA.
Foi através do regime da "manifestação de interesse" que Maria Eunice conseguiu legalizar-se. Arranjou emprego por meio de uma empresa de trabalho temporário, na internet. Ela que, no Brasil, trabalhava em vendas, é como cuidadora de idosos que ganha a vida em Portugal. A experiência de ter tomado conta da mãe, que ficou acamada durante muitos anos, ajuda, diz Maria Eunice.
Agora cuida de uma senhora de 88 anos com Alzheimer. É interna - o que significa que tem de passar lá a noite, ficar a dormir no local de trabalho (numa só cama ocupada, conforme os dias da semana, pela cuidadora que estiver de serviço - todas elas imigrantes).
"Já trabalhei com uma georgiana, já trabalhei com pessoas de África: Cabo Verde, Angola. Já trabalhei com uma equatoriana... Mas o que encontrei mais foram brasileiras."
Portugal é um dos países onde a taxa de participação dos imigrantes no mercado de trabalho, em relação à população nacional, é mais elevada. E isso reflete-se nas contribuições para a Segurança Social. Só no último ano, os imigrantes contribuíram com 3645 mil milhões de euros. Isto quer dizer que o montante que os estrangeiros colocam nos cofres do Estado é cinco vezes superior àquele que é pago em prestações sociais. No top das nacionalidades que mais contribuíram estão os brasileiros, com 36,7% do total das contribuições de imigrantes.
Os trabalhos, como o de Maria Eunice, que requerem mão-de-obra não qualificada são aqueles onde há maior prevalência de trabalhadores migrantes. E os trabalhadores estrangeiros têm também, em média, remunerações base mensais mais baixas do que as dos trabalhadores portugueses.
Para ir para o trabalho, Maria Eunice faz uma viagem de mais de uma hora de autocarro e depois mais 20 minutos a andar a pé. É o tempo que leva a percorrer a distância entre Campo de Ourique e o concelho de Sintra, onde atualmente habita, numa casa partilhada com outros imigrantes brasileiros. Vive num quarto.
"A vida aqui não vou dizer que é um mar de rosas. Porque em lugar nenhum está sendo. Nós estamos vivendo um mundo difícil. Para toda a gente", admite.
A solidão e as saudades de casa, não esconde que as sente. Mas Maria Eunice não se deixa desanimar.
"No meu aniversário, os meus amigos mais próximos estavam no Brasil. Os outros estavam trabalhando. O que é que eu fiz? Me arrumei e fui lá e me dei de presente a minha própria companhia", conta. "É assim que acontece a vida aqui fora. A vida de imigrante é isso."
"Eu acho que a fé - e eu tenho muita fé - move montanhas."

IV
"Sou discriminado a partir do momento que falo"
Luzes brancas fluorescentes iluminam as paredes maltratadas, com tinta a cair, e o chão de azulejo cinzento, frio. "Parece que a gente está em cativeiro", graceja Diogo. O ambiente inóspito contrasta com o calor e o conforto do ritmo que emana ali de dentro. É dali, no piso inferior do Clube Oriental de Lisboa, em Marvila, que nasce a primeira oficina de roda de samba da Europa.
Surdos, congas, tantãs, pandeiros, tamborins, agogôs. Os instrumentos de percussão enchem a sala. Por entre eles, a dispor cadeiras para os alunos, está o próprio Diogo – "Presuntinho", como é conhecido. "Ou, como dizem em Portugal, ‘Fiambrinho’. Em inglês, é ‘Little Ham’ e, em espanhol, ‘Jamoncito’", brinca. Um "apelido" que vem desde criança, dos tempos da capoeira.
O nome ficou, mas a capoeira deixou-a para trás, assim como o país que o viu nascer, o Brasil. Natural de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais, hoje, com 42 anos, Diogo é músico profissional e professor de percussão. Chegou a Portugal há dois anos, com a mulher - também ela música, cantora. É a sua primeira experiência como imigrante, nunca vivera noutro país. A adaptação, diz, foi facilitada pela ausência de barreira linguística. O domínio da língua é um aspeto fundamental, na opinião dos portugueses, para a integração dos imigrantes, de acordo com um Eurobarómetro sobre o tema. Mas, muitas vezes, o idioma acaba por ser pau de dois bicos.
Para os imigrantes, como os brasileiros, que vêm de países onde o português é a língua nativa, as diferenças de pronúncia e léxico são frequentemente fator de marginalização.
"Sinto que sou discriminado a partir do momento que eu falo. Pelo meu sotaque", assume Diogo.
"Sinto que sou discriminado a partir do momento que eu falo. Pelo meu sotaque", assume Diogo.
O fenómeno está estudado: chama-se glotofobia. Acontece quando as diferenças linguísticas não são aceites e as variações são confundidas com o uso incorreto da língua. No caso, o português (língua imposta aos países colonizados durante o período colonial) é tido como superior na sua forma europeia (ignorando-se as variações próprias que teve em cada território onde foi difundido). Assim, os laços históricos que remontam ao colonialismo continuam a ditar as dinâmicas de identidade – colocando aqueles que falam o português europeu numa posição mais favorável.
Um estudo feito em Portugal, pelas investigadoras Juliana Iorio e Sofia Gaspar, do ISCTE, debruçou-se mesmo sobre este fenómeno em contexto escolar – a partir da realidade das crianças imigrantes que estudam no concelho de Sintra. O relatório conclui que o sistema educativo em Portugal dá ênfase ao português europeu, negligenciando o historial linguístico dos alunos vindos de países da CPLP – o que leva a sentimentos de inadequação, por parte dos alunos, quanto às expectativas académicas e até a experiências de microagressão.
"É muito comum os brasileiros que vivem em Portugal ouvirem "quando é que vão aprender a falar português"", sendo o Brasil "o país onde mais se fala português", admite a presidente da Casa do Brasil de Lisboa.
"O preconceito linguístico é muito presente, seja no mercado de trabalho, nos serviços, nas universidades,... As pessoas sofrem preconceitos por não falar o português de Portugal", constata.
Sem complexos ou receios de ferir suscetibilidades, Ana Paula Costa traz à luz o ‘elefante na sala’: "Há um problema muito grande de xenofobia e de racismo".
"Esses casos estão ficando cada vez mais crescentes e latentes em Portugal, mais agressivos e violentos", defende.
O último barómetro da Fundação Francisco Manuel dos Santos que analisou a Perspetiva dos Portugueses sobre a Imigração revela que mais de metade dos portugueses inquiridos (51%) acha que o número de imigrantes brasileiros deve diminuir. E as perceções dão lugar a ações. Em 2022, "nacionalidade brasileira" foi a expressão mais usada na fundamentação das queixas por discriminação recebidas pela Comissão para a Igualdade Contra a Discriminação Racial (34,2% das queixas).
Apesar destes dados, surgem outros que podem até soar algo contraditórios - embora não o sejam necessariamente. Como o estudo da Lisbon Public Law, o Centro de Investigação em Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, realizado no final de 2023, que apontava a comunidade brasileira como a mais bem integrada no país, aos olhos de mais de 72% dos inquiridos (mesmo à frente dos imigrantes europeus, com apenas 41%).
"É interessante pensar o que é esse "estar bem integrado". (...) Muitas vezes, se tenta colocar como bem integrado aquele que assimila, absorve, a cultura, quando nós sabemos que isso é uma falácia", aponta Ana Paula Costa.
Assume, por isso, a desilusão com que, além das posições sobre imigração do atual governo de centro-direita, recebeu as declarações - que classifica como "lamentáveis" - do líder da oposição de esquerda [Pedro Nuno Santos, secretário-geral do PS, que defendeu que os imigrantes têm de respeitar a cultura portuguesa].
"Temos visto o crescimento de discursos discriminatórios que tentam criar aqui uma ideia de imigrante como inimigo, invasor, criminoso", sustenta. "A cultura portuguesa tem de ser respeitada, assim como qualquer outra cultura de nacionalidades que vivem aqui em Portugal. Não há essa ideia de cultura superior, de cultura melhor do que a outra. O bonito disso é que possamos conviver todos com respeito e com as diferenças."
"É um fato: Portugal tem um problema de racismo e xenofobia"
Diogo "Presuntinho" não esconde que sente discriminação também, desde logo, por trabalhar com arte associada à cultura brasileira.
"A gente está proporcionando entretenimento para as pessoas. Movimenta o comércio dos lugares, movimenta o turismo. A gente faz isso de graça e, ainda assim, tem dificuldades", lamenta.
"Estou aqui, não estou de favor. Pago meus impostos, está tudo certo. Então, eu exijo respeito. Entendo também que eu não estou no meu país e busco respeitar isso. Mas sinto, sim, que tem esse preconceito por ser brasileiro", desabafa.
Ana Paula Costa fala numa "dificuldade muito grande de se reconhecer que este é um problema grave que afeta a vida das pessoas" e que "contaminou as estruturas, os serviços e o país". Mas insiste: para combater e desconstruir o racismo em Portugal, o primeiro passo é admitir que ele existe.
O segundo? A responsabilização legal. "O racismo, em Portugal, é uma contraordenação. Alguns atos racistas estão no nosso código penal, mas outros não."
Segundo o Relatório sobre Imigração do Observatório Nacional da Luta Contra a Pobreza, grande parte das vítimas de racismo nem sequer apresenta queixa - já que, na maioria dos casos, as denúncias nem resultam em processos de contraordenação: de mais de 490 queixas feitas, em 2022, nem 90 deram em contraordenações.
"A legislação é bastante fraca e limitada relativamente a isso. É um atraso o racismo não ser criminalizado", conclui a presidente da Casa do Brasil.

V
"Vai dar tudo certo"
Diogo repete a frase como um mantra: "Vai dar tudo certo." É a palavra de ordem sempre que os receios da falta de talento começam a conspirar contra a boa disposição na sala.
Após a chegada a Portugal, quando começou a tocar no Cais do Sodré e a trabalhar com blocos de carnaval, "Presuntinho" percebeu que havia um espaço por preencher – o potencial inexplorado da roda de samba em Portugal.
"Senti que tinha uma demanda, que queriam aprender a tocar instrumentos de roda de samba. E não havia nada específico disso, uma oficina ensinando", explica. Assim nasceu o ‘Patú Sambá’, projeto que hoje arrasta muitos e muitos, todas as semanas, até Marvila, para saborear um pouquinho do que são os ritmos do Brasil.
"A primeira turma começou com vinte e poucas pessoas. Hoje, a gente está indo para a quarta", adianta Diogo. Esta tarde, são cerca de 60 os alunos em sala – mas, desde que arrancou, foram já mais de uma centena os que passaram pelo Patú Sambá.
Alguns trazem os próprios instrumentos consigo. Outros nunca tocaram um instrumento na vida. Em poucos instantes, de meros desconhecidos passam a companheiros de samba, cujos ritmos se entrelaçam, através da conversa e da música. O sentimento de comunidade começa a erguer-se.
"A linguagem da música, ela é universal (...). É uma conversa que acontece aqui. Sem falar. Fazendo a linguagem do tambor"
Apesar de também haver portugueses e outros estrangeiros, a maioria das pessoas aqui, confirma Diogo, são brasileiros "recém-chegados" a Lisboa. Na capital portuguesa, a roda de samba serve, de certo modo, como uma "rede de apoio" para estes que chegam.
"As pessoas estão vulneráveis. Elas não se conhecem. Então, começa essa primeira parte, de estar-se expondo. Aos pouquinhos, vão entendendo que é um ambiente seguro e vão se conectando", descreve.
"Tem gente que chora na aula de emoção", reforça Diogo, que fala numa espécie de "resgate de ancestralidade". "Muitas pessoas estão aqui sozinhas. E a forma de matar essa saudade, de se conectar com o seu país, é tocando."
Um espaço de "comunhão" e de "resgate". De acolhimento, quando, muitas vezes, o país que os deve acolher não mostra sê-lo. Quando os tambores tocam, como afirma Ricardo, é um retorno "às origens". A fé, como professa Maria Eunice, é restabelecida. E o mantra de Diogo ecoa: "Vai dar tudo certo".